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Pela janela, dona Lúcia já filmou 30 acidentes

Moradora da zona norte de SP, ela registra com uma câmera as batidas violentas na esquina de sua casa

Por Adriana Carranca
Atualização:

"Deus o livre! Minha Nossa Senhora! Eu nem quero pensar em dirigir aquilo!" Aos 69 anos, Lúcia Pires Canavan nunca pegou no volante de um carro. Mas vive assustada com o trânsito. A cada brecada, seu coração dispara e a pressão vai às alturas. Cansada disso, a aposentada, há 50 anos morando na Vila Guilherme, na zona norte de São Paulo, passou a registrar com uma câmera VHS todos os acidentes que ocorrem na esquina de sua casa, no cruzamento das Ruas do Imperador e Coronel Jordão, que um dia já foram de terra e onde ela, seus filhos e netos brincaram. "Hoje, ninguém pode colocar o nariz para fora de casa. Até a conversa de vizinho também acabou", lamenta. Ela sempre gostou de sentar na calçada para jogar conversa fora com a vizinhança. "No meu tempo, isso era tudo de terra. Além da minha casa, só tinham mais duas aqui e a de frente era uma chácara", lembra, olhando da janela de sua varanda, decorada com papel de parede florido e plantas para todos os lados, de onde hoje se vê uma casa grudada à outra. Sobre a mesa, em torno da qual Lúcia gostava de se sentar para olhar o movimento na rua, agora está instalada a câmera - improvisada sobre um galão vazio e uma velha lista telefônica. E dona Lúcia virou celebridade. Basta um pouquinho de tempo na varanda para perceber o assédio dos motoristas. Uns diminuem a velocidade - e não é precaução para atravessar a esquina, não. Outros apontam para a câmera, buzinam, dão tchauzinho. E há até quem mande beijinhos para a lente. Já a criançada grita da rua: ?tia, cadê a câmera?? "Virei celebridade, veja você, para acudir a vida dos outros e a minha também. Resolver que é bom, nada." O movimento de carros aumentou com a chegada de uma universidade ao bairro. As duas ruas se tornaram mão dupla. No início do ano, foi feito o recapeamento do asfalto, mas sem qualquer sinalização. E os acidentes começaram a se tornar mais freqüentes. Foi depois que a aposentada apareceu na televisão, com imagens de mais de 30 acidentes que registrara em menos de dois meses, que as coisas começaram a melhorar. "Não deu 15 dias para a CET (Companhia de Engenharia de Tráfego) vir aqui, pintar faixas na rua e colocar o sinal de atenção. Antes não tinha nada." Mas, quando a reportagem do Estado visitou Lúcia, o tal sinal de atenção - onde se lê "pare e cruze com cuidado" - estava apagado. "Já tem uma semana que está assim e ninguém arruma", reclama. O filho, Ere José Canavan, de 39 anos, diz que já reclamou com a CET. ACIDENTES No dia anterior à visita, um carro que descia a ladeira da Rua Coronel Jordão em alta velocidade atingiu em cheio um motociclista. Este, Lúcia não filmou. "Tinha oito dias que não acontecia uma batida aqui, achei que as coisas estavam melhorando." E oito dias é muito? "Pra quem tem barulho todo dia, é uma eternidade." Mas o sossego durou pouco. "No sábado, teve uma brecada tão grande que eu não conseguia mais dormir." Há cerca de um mês, outro carro descia a mesma ladeira quando foi atingido por um que vinha pela Rua do Imperador, atravessou a intersecção de esquina a esquina em diagonal, avançou sobre a calçada e capotou, rasgando o muro lateral da casa de Lúcia - as marcas de sangue ainda são visíveis. "Ele (o motorista) foi parar debaixo do carro. Saiu quase morto", suspira Lúcia, colocando as mãos na testa e balançado a cabeça, inconformada. Três árvores já foram arrancadas das calçadas da frente e da lateral de sua casa em acidentes. Pouco mais de dois meses atrás, outro susto: atingida por outro carro na mesma esquina, uma Kombi foi parar dentro do porão da casa de Lúcia. No andar de cima, onde fica a varanda, o marido, de 70 anos, lia o jornal sentado na poltrona com vista para a rua. Por muito pouco, o chão não se abriu sob ele com o impacto da batida. Foi depois desse susto que surgiu a idéia da câmera. Dona Lúcia, como é conhecida, já fez reunião na Subprefeitura da Vila Guilherme, reclamou com os policiais da guarita próxima de sua casa, chamou a CET. Segundo ela, há poucas semanas marronzinhos estiveram na esquina e prometeram fazer ali uma rotatória. "Não voltaram", diz. "Também me deixaram uma fita para que eu gravasse uma cópia com os acidentes. E disseram que mandariam as imagens para estudo. Agora, eu acho que isso não é caso de estudo, é caso de mais urgência, porque as fitas estão aqui para provar, não é?" Enquanto a resposta não vem, dona Lúcia continua a filmar os acidentes. Procurada, até as 18 horas de ontem a CET não havia se pronunciado.

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