Pessoa em situação de praça

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Revitalizaram a Praça Roosevelt! Quem antes caminhasse naquele pedaço do centro de São Paulo tropeçava em mendigo. Não há dúvida de que a situação mudou da água para o vinho, ou pelo menos para um chopinho gelado: hoje ali se tropeça em dramaturgo, podendo-se acertar, com alguma sorte, até o Mário Bortolotto. (Aliás é melhor não falar em "sorte", mas em "m.", o sinônimo de "sorte" no dicionário teatral: "podendo-se acertar, com alguma ?m.?, até o Mário Bortolotto".) Mas como eu ia dizendo, a revitalização aconteceu porque lá se instalaram sete teatros - o último deles na segunda-feira passada. Nesse palco redivivo em que se transformou a Praça Roosevelt, o único personagem a não se revitalizar foi o Nilton, o mais clássico de seus mendigos. Putz, que "sorte", não se pode mais chamar mendigo de mendigo... O Nilton é pessoa em situação de rua. No seu caso, em situação de praça. Nilton nasceu em Piritiba, na Bahia, onde consta que Raul Seixas tenha empreendido uma reforma agrária, além da música Capim Guiné ("Plantei um sítio / No sertão de Piritiba / Dois pés de guataíba / Caju, manga e cajá"). Então o negócio era que o Nilton conhecia o Raul Seixas e o considerava mesmo um amigo, de quem frequentava o apartamento na Rua Frei Caneca. Mas, como o Nilton não nasceu ontem (segundo seus cálculos, foi "há dez mil anos atrás"), começou a perceber que na verdade ali se dava "um juntamento de maluco". E tirou o time de campo, ficando desprovido de parentes e conterrâneos, duas "pestes" que ele considera "o diabo na cruz". Nessa ocasião o Nilton ainda tinha emprego - era "encartador de jornal", ou seja, os cadernos iam saindo das máquinas de impressão e o Nilton enfiava neles uns encartes publicitários. Cobriu férias no Estadão e trabalhou na Folha de S.Paulo. Sua primeira experiência como mendigo aconteceu numa noite em que deixou a sede da Folha, na Barão de Limeira, e foi tomar uma cachaça (umas dez, vai). Acordou nos fundos da igreja, na Praça Roosevelt. A ressaca, porém, "tinha descido para a perna", que travou na altura do joelho. Foi socorrido para um pronto-socorro, onde se diagnosticou improvável sequela de poliomielite. Em resumo, o Nilton arrumou umas muletas e parou de trabalhar. Todos os domingos o Nilton pode ser visto na porta da igreja, "trabalhando" na captação de recursos. Se há investidores, ele dorme numa pensão de R$ 5. Senão fica por ali, em frente ao Espaço dos Satyros, só que do outro lado da calçada. Certa vez, sabedor de que havia no teatro uma ousada encenação sobre o Marquês de Sade, pensou em oferecer-se para algum papel em que pudesse atuar de maneira mais firme. Seu desejo, no entanto, ficou nas preliminares. Aos 60 anos, nenhum dente, o Nilton está sempre em busca de uma aventura sobre o seu papelão dos leites Elegê. Tudo o que podemos desejar a ele é uma boa "m.".

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