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Por dentro da cultura das armas nos EUA: ‘Dando tiros de fuzil com crianças de 5 anos

O cotidiano da família Thompson na Lusiana, estado mais tolerante em relação às armas nos Estados Unidos

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Por André Fran
Atualização:

Eu estava cruzando os Estados Unidos para uma cobertura especial da corrida eleitoral extremamente polarizada de 2016. Mas nunca podia imaginar, nem nos meus sonhos mais estranhos, que numa manhã tranquila de sábado, em Lousiana, eu estaria dando tiros de fuzil durante o café da manhã com crianças de 5 anos de idade.

Em busca das pautas mais quentes daquelas eleições, eu já havia abordado a questão das fake news em conversas com jornalistas na linha de frente da cobertura política americana, tinha abordado o tema do preconceito com os imigrantes ao mostrar o muro que separa trechos do México e EUA, revelei o lado decadente do capitalismo desenfreado com as ruínas modernas de antigos centros industriais como Detroit e já tinha tudo planejado para registrar na sequência uma dessas tradicionais feiras de armas que são realizadas com assustadora frequência em cidades do sul do país.

Menino de 11 anos experimenta fuzil AR-15 durante encontro anual da Associação Nacional de Rifle em Houston, Texas Foto: REUTERS/Adrees Latif

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Foi quando, durante uma parada sem compromisso em um bar de Las Vegas, o senhor que bebia seu whisky ao meu lado se apresentou e emendou com a clássica pergunta: “o que você faz?”. Ao tomar conhecimento de minha missão em sua terra, e de minha pauta seguinte, ele fez questão de me interromper da forma mais amistosa possível. “Se você quer falar sobre armas, tem que ir à minha cidade.” E começou a defender o seu ponto de forma bem convincente: “Estou viajando de férias, mas não ando com menos de 5 armas no carro. Em casa, possuo um cofre com mais de 10 pistolas automáticas. Durante os finais de semana, vamos a uma casa de campo onde um arsenal composto por mais de 50 fuzis de diferentes calibres nos aguarda para a prática de tiro ao alvo e a ocasional caça de veados.”

Fiquei tão estupefato quanto curioso, jornalisticamente falando, e perguntei como seria a melhor maneira de abordar esse curioso traço da cultura americana no local. “Ora, passando uns dias com minha família.”, disse ele dando uma amostra inusitada da tradicional hospitalidade sulista dos EUA. Parecia perfeito demais para ser verdade, mas aceitei de cara o convite. Mais tarde, eu ia entender o porquê de toda essa disposição em revelar a intimidade tão controversa da família Thompson, de Shreveport, Lusiana.

Os Thompson são uma típica família do sul dos Estados Unidos. “Rednecks”, como eles mesmo se intitulavam. O termo, que muitas vezes é usado pejorativamente, representa tradicionalmente o homem, branco, conservador que queimava o pescoço trabalhando sob o sol das zonas rurais de estados como Alabama, Arkansas, Wyoming, Luisiana. A tradução mais próxima para o português seria “caipira”, guardadas as devidas diferenças culturais, claro. Seria algo como uma versão do nosso adorável personagem, Chico Bento, só que armado até os dentes.

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Mas o estilo de vida daquela família não tinha nada de especial ou diferente de tantas outras da região. E era nessa realidade que eu queria entrar. E assim foi. Por alguns dias, eu vivi o cotidiano de uma clássica família de Shraveport, Lusiana, que foi gentil a ponto de abrir suas portas, suas vidas e sua cultura para este brasileiro cujo único contato com armas foi do lado errado de um revólver velho durante um assalto. O choque cultural às vezes é necessário também para revelar muita coisa que pode passar despercebida à primeira vista.

Os Thompson deram um tour de sua cidade e sua casa. Das lojas de armas onde vendiam balas que “atravessam uma parede de concreto” (nunca foram usadas para deter algum crime), ao closet que abrigava sapatos de salto e cofres com munição suficiente para “abater uma manada de elefantes” (não existem elefantes na Luisiana, evidentemente). Na prática, aquele arsenal todo não parecia ter lógica alguma. Era como uma metáfora perfeita da Segunda Emenda da Constituição americana, aprovada em 1791 para garantir o direito dos cidadãos de manter e portar armas para que possam se defender de um governo tirano. É inconcebível acreditar que hoje em dia um grupo de caipiras armados de metralhadoras possa fazer frente ao exército mais poderoso do mundo. 

Durante minha estada por lá, fui percebendo outros detalhes que mostravam o quanto às armas estavam associadas a uma questão cultural muito mais do que prática. Uma imensa bandeira dos confederados enfeitava orgulhosa a entrada da garagem do lar dos Thompson que, como é tradição na arquitetura americana, fica de frente para a rua ao lado da entrada principal. O estandarte usado pelos estados escravocratas durante a Guerra Civil americana, e que hoje representa muito do orgulho e identidade do sul dos Estados Unidos, também foi apropriado por movimentos e grupos racistas como a Klu Klux Klan e, mais recentemente, por grupos radicais da nova extrema-direita do país. Não à toa, a tal bandeira foi proibida em eventos populares, cemitérios de veteranos e até mesmo de ser vendida em alguns estados.

Antes do jantar de boas-vindas, me ofereci para ajudar um de meus anfitriões com as compras. Em um tradicional supermercado local, tomei um susto ao me deparar com espingardas, escopetas e pistolas sendo vendidas tranquilamente ao lado de legumes e frutas da estação. Mas, conversando com a simpática atendente do local, percebi que o estranho no caso era eu, ao me ver como alvo (figurativamente, claro) das indagações dela e de alguns de seus clientes: “Mas você não pode andar armado no Brasil? Como você faz se um ladrão invade a sua casa?” A incredulidade vinha misturada com uma certa pena deste brasileiro “indefeso”. O curioso é que a maioria nunca havia sido obrigada a usar sua pistola ou fuzil. Mais do que o medo de um roubo, eles temiam o assalto à sua liberdade e identidade caso não pudessem mais comprar e portar armas.

Noutro dia, durante uma sessão de “tiro ao alvo” regada a muita cerveja e churrasco de alce e esquilo (sim, eu provei), me senti à vontade para questionar meus anfitriões sobre o tratamento a cidadãos armados fossem eles brancos ou negros. “Sempre o mesmo tratamento”, eles foram categóricos. O que eu sabia não ser verdade. Naquele mesmo mês, o jovem Philando Castille foi morto durante uma abordagem policial mesmo alertando ao oficial que tinha licença para portar armas e uma pistola guardada de forma segura e legal em seu veículo. Esse traço racista e misógino que permeia a cultura da região se confirmava quando alguém afirmava que ia comprar ainda mais armas por medo de Hillary Clinton ser eleita, uma vez que “os EUA já tinham ido pro buraco quando elegeram um presidente negro”.

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Meus anfitriões pareciam escalados para aquele papel, pois eram o recorte perfeito do típico morador do sul dos Estados Unidos. Eu estava tendo a oportunidade única de vivenciar um lado relevante da complexa democracia americana, que sob a mesma bandeira e o mesmo hino, abriga realidades tão distantes. Aquela adorável e complexa família, me recebeu de forma calorosa e eu ia absorvendo suas histórias, relatos e opiniões. Questionava, discordava e dava minha opinião quando possível mas, principalmente, ia formando um retrato revelador de um lado pouco conhecido da cultura americana. E, por trás das versões que os Thompson me apresentavam, existem os fatos.

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Lusiana, o lar dos Thompson, é o estado mais tolerante em relação ao controle de armas de todos os Estados Unidos. E o segundo colocado no ranking de mortalidade por arma de fogo. O estado tem 3 vezes mais tiroteios com morte do que a média do país. Eles não checam antecedentes criminais para revenda de armas sem licença. E não permitem que administrações locais regulem armas de fogo. Em relação ao resto do mundo, os moradores dos EUA tem 10 vezes mais chance de serem mortos por armas de fogo do que em qualquer outra nação desenvolvida. É no país que se concentra 82% de todas as mortes por arma de fogo entre os 22 países mais desenvolvidos do mundo. E 92% das mortes de jovens entre 15 e 24 anos de idade.

Esse números fazem grande parte da sociedade americana questionar a balança entre o direito de portar armas e o saldo mortal da segunda emenda de sua constituição. Saldo este que fica mais evidente a cada massacre com armas em escolas, igrejas, supermercados... em diferentes partes dos Estados Unidos. Eu deixava a Luisiana com a impressão de que para defender sua identidade, os Thompson estavam dispostos a seguir ignorando a realidade.

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