Projeto mira inclusão por meio da 'escalada terapêutica'

Atividade criada por psicólogo permite que pessoas com mobilidade reduzida e cadeirantes pratiquem a modalidade e superem limites

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Por Jessica Brasil Skroch
Atualização:

Depois de um acidente de helicóptero, Miguel Adriano Rossi passou a usar cadeira de rodas e ter muito medo de altura. Ele, que é atleta de basquete, sempre esteve muito envolvido em esportes, mas nunca imaginou que poderia escalar por conta das suas limitações. No "Escalada Terapêutica", projeto de inclusão social de pessoas com deficiência por meio da escalada, Rossi superou não só o medo de altura, mas a ideia que a escalada não era um esporte adequado para ele. 

Iniciado no começo de dezembro deste ano, o projeto é de Curitiba e foi criado pelo psicólogo Allef Degam Furtado. No lançamento, foi apresentado um novo equipamento, idealizado por ele, que permite que pessoas cadeirantes e com mobilidade reduzida possam subir nas alturas por meio de uma corda e acomodados em uma cadeira. Foi o que Rossi, segundo vice-presidente da Associação de Deficientes Físicos do Paraná (ADPF), fez: "Foi muito legal. Eu me senti na minha cadeira, uma sensação de liberdade. Antes eu não tinha a intenção de subir, mas tive segurança porque a estrutura é toda fechada", conta. Com o incentivo dos participantes, Rossi conseguiu ir além das suas expectativas. 

Novo equipamento possibilita escalada para pessoas com deficiência, inclusive cadeirantes. Na foto, Miguel Rossi usando o novo equipamento Foto: ARQUIVO PESSOAL

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O equipamento é uma cadeirinha adaptada, explica o psicólogo. Diferente das cadeiras tradicionais, não é necessário fazer os movimentos de "vestir" o equipamento, o que é complicado para uma pessoa cadeirante. "A pessoa só é transferida da sua cadeira de rodas para essa estrutura que está em cima da cadeira tradicional. Com um sistema de fitas reguláveis, é possível encaixar a pessoa", descreve Furtado. As fitas prendem nas pernas, cintura e peitoral, e há apoio para as costas também. 

Diferente do método tradicional, em que a pessoa usa a cadeirinha e escala usando a parede, nesse modelo a pessoa sobe por uma corda, o que evita bater partes do corpo na parede. Isso possibilita também que pessoas que não tem mobilidade nas mãos possam subir dando sinais para aqueles que estão controlando as cordas de baixo. Outro diferencial é o sistema de polias redutoras de peso que permite que a pessoa puxe quatro vezes menos o seu próprio peso. "Tudo é pensado para fazer com que a pessoa sinta que pode, mesmo com adaptações, subir tão alto quanto", explica Furtado. 

Para confeccionar o material, Furtado contou com a expertise do Ginásio Campo Base de Curitiba, onde ocorrem os encontros, da Arienti Equipamentos e do grupo de montanhistas socorristas Cosmo. Segundo o psicólogo, já existem diversas estruturas que oferecem acessibilidade na paraescalada, mas essa é a primeira que possibilita a escalada esportiva de pessoas cadeirantes no País. 

A superação de limites e a socialização são dois importantes aspectos do projeto do psicólogo. "O foco principal é utilizar a escalada como facilitadora de vínculos sociais entre pessoas com deficiência", explica. A iniciativa vem da experiência pessoal, quando ele começou a escalar indoor na faculdade. "Eu vi que era uma atividade que me fazia querer me desafiar, perceber meu corpo, o momento presente, e me manter focado."

O psicólogo Allef Degam Furtado idealizou o 'Escalada Terapêutica', projeto de inclusão social de pessoas com deficiência por meio da escalada esportiva Foto: Os França - Lucas de França e Amanda Silva de França

Um dia, Furtado levou um paciente para escalar com ele. Na época, havia pouco tempo de vinculação entre eles e a atividade os aproximou muito. A experiência fez com que o psicólogo fizesse sua monografia sobre o tema, e, com o tempo, percebeu que isso poderia ter o potencial expandido, especialmente para pessoas que nunca imaginaram que poderiam escalar. 

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Com o novo equipamento, pessoas paraplégicas podem ser incluídas na atividade. É o caso de Júnior Ongaro, ex-presidente da ADFP, que também esteve no primeiro evento do projeto. Ele conta que sempre admirou a escalada, mas sabia que era algo que não poderia realizar pela falta de mobilidade das pernas. No entanto, sua visão mudou completamente na ocasião: "Eu não consigo por em palavras o que foi essa experiência. Foi incrível, uma sensação que eu nunca tive. É uma alegria até chegar lá em cima", lembra admirado. Para ele, foi realmente um momento terapêutico. 

Segundo o idealizador do projeto, o objetivo é sobre aproveitar o momento, e não sobre chegar lá em cima: "A felicidade das coisas não está no fim. É sobre aproveitar a escalada". As dificuldades são adequadas à possibilidade de cada participante, mas as limitações são desafiadas com o passar do tempo, como ocorre em todo o esporte. 

Além da pessoa poder ressignificar suas limitações, Furtado explica que a escalada proporciona diversas metáforas que promovem reflexões sobre a vida de cada participante. O momento, compartilhado com colegas, também aumenta a vinculação, comunicação e confiança no outro. "Quando alguém pensava em desistir, os incentivos do grupo faziam a pessoa conseguir ir mais longe", relata. Nos encontros, o psicólogo utiliza técnicas do psicodrama para ampliar esses objetivos. 

Ainda que Curitiba tenha abrigado, a partir deste ano, o primeiro Centro de Treinamento Olímpico de Escalada Esportiva no País, a paraescalada não tem nenhum representante na cidade. Furtado acredita que o projeto tem potencial de também ser uma porta de entrada para o esporte. 

A paraescalada

Gustavo Henrique Santos, paraescalador campeão na sua categoria no Campeonato Brasileiro de Escalada Esportiva 2021, veio de Florianópolis para prestigiar o evento. Para ele, projetos como esse são muito importantes para ampliarem o alcance do esporte no Brasil, que ainda está dando seus primeiros passos. A previsão é de que em 2028 o esporte se torne paralímpico, mas, na opinião de Santos, o País ainda precisa divulgar mais a possibilidade da paraescalada.

Gustavo Santos, único paraescalador esportivo de Santa Catarina, participou do evento de lançamento do Escalada Terapêutica, em Curitiba Foto: Os França - Lucas de França e Amanda Silva de França

Quando morava em Curitiba, Santos era o único paraescalador que competia na região, e hoje é o único em Santa Catarina. As competições com a modalidade ainda são escassas e poucas iniciativas buscam a inclusão nesse esporte. Além disso, a maioria dos ginásios não conta com profissionais especializados, explica Santos. No começo, ele precisou ir descobrindo adaptações sozinho: "O pessoal nunca tinha visto alguém com prótese na perna escalando. Se eu tivesse tido as dicas de alguém para começar, talvez a minha evolução tivesse sido muito mais fácil e rápida". 

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Como participar

Para quem é de Curitiba e tem interesse em participar, mais informações podem ser encontradas no perfil do Instagram do psicólogo, @allefpsico. 

Atualmente, o psicólogo cobra uma taxa de participação nos encontros porque está arcando com todos os custos sozinho. Porém, essa não é a sua intenção, e está buscando estratégias para que a iniciativa seja remunerada e possibilite um acesso gratuito. A ideia é também ampliar o projeto para outras cidades e estados, contribuindo para o fomento da paraescalada no Brasil. 

Como pessoas com deficiência podem começar a praticar esportes

O primeiro passo para pessoas com deficiência começarem a praticar esportes é procurar organizações, instituições e clubes que trabalhem com o esporte como inclusão social, indica Eliane Miada, fundadora e diretora da Associação Desportiva para Deficientes (ADD), em São Paulo. "Às vezes a pessoa pensa que por conta da deficiência não pode praticar determinada modalidade, mas quem vai fazer essa avaliação são os profissionais especializados dessas organizações", explica. 

Depois da avaliação, a equipe técnica tentará combinar as possibilidades e os desejos da pessoa. Esse passo vale tanto para aqueles que querem fazer para se socializar e exercitar, como aqueles que buscam uma atividade competitiva. 

Eliane explica que acontece de algumas organizações não terem a modalidade mais indicada, ou do desejo da pessoa. Nesse caso, serão indicados outros lugares em que a prática poderá acontecer. Uma outra dica da especialista é procurar se ambientar com o determinado esporte: "assistir treinos, ver vídeos, assim você tem uma noção de como funciona e se está de acordo com o que você busca", sugere. 

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Para ela, o principal fator que impede as pessoas com deficiência de praticarem esportes é o medo, que faz com que a possibilidade nem seja buscada ou com que seja procurada tardiamente. "Conviver com outras pessoas que praticam esportes é muito importante. Ao ver pessoas com uma deficiência igual ou pior sendo autônomas e independentes na atividade, a pessoa percebe que ela também tem condição para isso", explica Eliane. No caso de crianças, ela sugere que quanto mais cedo essa introdução seja feita, melhor. Outra sugestão é não se comparar com os outros, já que tudo leva tempo e depende da prática. 

Para quem é de São Paulo, a ADD oferece vagas em diversas modalidades. As inscrições podem ser feitas pelo e-mail esporte@add.org.br. Para quem está em outra cidade, o site do Comitê Paralímpico disponibiliza uma lista de clubes especializados por cidade. 

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