''Quando eu morrer, a minha vila morre''

Os trens pararam e quase todo mundo foi embora de São Bento

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Por Rodrigo Brancatelli
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É como se Nilton Arnaldo Fogo estivesse a compensar todos esses anos de esquecimento. Um dos últimos moradores de São Bento, bairro rural de Araras, no interior de São Paulo, o mecânico de 75 anos, passos miúdos e gestos lentos, vira uma criança quando começa a falar da época em que os trens barulhentos da Companhia Paulista passavam bem na frente da sua casa. A memória esburacada simplesmente desaparece; as palavras quase se atropelam em sua boca; a fala mole e arrastada se transforma em estridente, de tanta empolgação. "Meu filho, se eu não contar essa história para você, ela vai se perder. Acho que, quando eu morrer, a minha vila também morre", diz ele. São Bento existe no mapa desde 1º de dezembro de 1885, quando a estação ferroviária foi inaugurada. Pelo menos 400 famílias moravam nos arredores, havia posto dos correios, três armazéns de secos e molhados, botequins, duas sorveterias ("meu pai tinha uma sorveteria, era a melhor", gaba-se Nilton Fogo). Mas a exemplo de inúmeras vilas que se formaram ao redor de estações ferroviárias, a de São Bento perdeu a importância depois que o trem parou de passar por ali, em fevereiro de 1977. Os vizinhos do mecânico foram embora, as lojas fecharam, a estação foi desmanchada e as casas, demolidas. Hoje, com apenas cinco imóveis em pé, São Bento é uma cidade fantasma, um capítulo destruído e esquecido da história do desenvolvimento paulista. "Eu cheguei aqui em 1940 e tudo girava em torno da estação", conta Nilton. "Lembro que eu pegava o trem para a capital às 5h45 e voltava às 21h30. Mas, quando os trens pararam, a vila parou também, todo mundo foi embora. Na semana passada mesmo, derrubaram as últimas 20 casas ali atrás, só sobrou tijolo." Outrora pontos de partida para a formação de bairros e cidades, as linhas férreas hoje podem ser consideradas imensas cicatrizes pelo Estado de São Paulo, catalisadoras de grandes vazios habitacionais. Há pelo menos 25 localidades como São Bento que foram levadas ao isolamento, onde as estações foram abandonadas e o patrimônio virou ruína. DESCASO Os reflexos do desmantelamento das linhas ferroviárias se mostram em números - se na década de 1930 cerca de 70% da população vivia nas áreas rurais, hoje esse índice não chega a 6% no Estado. A reportagem percorreu cerca de 2.500 quilômetros em busca de locais como Nova Louzã, Paraisolândia, Nova Pauliceia, Monte Alegre, Ouro, Guanabara, Coronel Pereira Lima, Cresciuma e outras vilas esquecidas. No caminho, encontrou antigos moradores, explicações das mais diversas para o êxodo rural, exemplos de descaso e omissão dos órgãos de patrimônio. "Eu queria ter guardado mais coisas dessa época de ouro do bairro de São Bento, porque atualmente eu só tenho umas fotos e a minha memória", diz Nilton Arnaldo Fogo, que permanece com a mulher na mesma casa que pertenceu ao avô e ao pai, para trabalhar como mecânico para as fazendas de Araras. "Quando derrubaram a estação, foi uma das coisas mais tristes da minha vida. Lembro que nas telhas estava escrito ?Marseille? em francês. São pedaços da história que foram perdidos."

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