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Quatrocentona, biblioteca dos monges passa por informatização

Nos últimos seis anos, 12 mil dos 100 mil títulos do tradicional Mosteiro de São Bento já foram catalogados

Por Edison Veiga
Atualização:

Oásis de repouso, tranqüilidade e oração no meio do caótico e barulhento centro de São Paulo, o Mosteiro de São Bento esconde, dentro de seus domínios, uma rica biblioteca, possivelmente a mais antiga da cidade. São 100 mil títulos, sobretudo dedicados à área de Humanidades, como Religião, Filosofia, Literatura e História. Nos últimos seis anos, esse vasto acervo - recheado de obras raras - passa por um processo de reorganização e informatização. Um trabalho de formiguinha capitaneado por André de Araújo, de 29 anos, bibliotecário profissional contratado pelos monges. Ele conta com a ajuda de um assistente e de alunos-bolsistas da Faculdade de São Bento - atualmente são quatro. Até agora, o grupo deu conta de 12% do total do trabalho. Sim, se continuar nesse ritmo, a catalogação eletrônica completa levará meio século. O tempo nunca foi problema para os religiosos da Ordem de São Bento, medieval organização religiosa fundada pelo santo católico que viveu entre os anos 480 e 550. As normas da vida monástica foram sistematizadas em um livro de 73 capítulos, de autoria atribuída ao santo e conhecido como Regra de São Bento. No coração de São Paulo, os 42 monges que abraçaram a ordem observam religiosamente, sem trocadilho, esse regimento. Por isso, desde 1598, quando os beneditinos aqui chegaram, o silêncio da madrugada do claustro é rompido pontualmente às 5h05, quando um deles badala o sino que desperta todos os companheiros. Em 25 minutos, ficam a postos no altar da ainda fechada Basílica de Nossa Senhora da Assunção, a igreja contígua ao mosteiro, para entoar o Ofício Divino, primeira das cinco orações do gênero celebradas diariamente. Assim como a oração, a leitura também está presente na Regra. O capítulo 48 recomenda que os monges se entreguem diariamente ao trabalho e aos livros. Isso fez com que historicamente todo mosteiro nascesse com uma coleção de obras. "Presume-se que já existisse uma biblioteca, mesmo que pequena, quando o mosteiro foi fundado, em 1598", afirma o bibliotecário André de Araújo. "Quando, na Idade Média, a cultura letrada praticamente desapareceu no Ocidente, ela sobreviveu na Igreja, graças, principalmente, aos mosteiros", completa o monge-bibliotecário Carlos Eduardo Uchôa, de 46 anos. O hábito de ler é cultivado até durante as refeições: enquanto os outros, em silêncio absoluto, comem, um monge fica responsável por recitar textos sagrados e trechos de livros de Filosofia ou História. Na comunidade monástica, cada religioso tem sua incumbência. Há o cozinheiro, o alfaiate, o tesoureiro... Uchôa - ou dom Eduardo, como costuma ser tratado - entrou para o Mosteiro de São Bento há 13 anos. Três anos depois, assumiu a biblioteca. "Como sou historiador e artista plástico, naturalmente tenho uma predileção pelos livros", justifica ele, que acumula duas outras funções: é reitor do Colégio de São Bento e diretor da faculdade homônima, ambos anexos ao mosteiro. ACESSO RESTRITO Desde que os monges decidiram profissionalizar a gestão da biblioteca, dom Eduardo tem atuado como coordenador. É dele a palavra final na compra de novos títulos, por exemplo. "Sempre que precisamos de alguma obra nova, preciso levar o pedido até o dom Eduardo", confirma Araújo. Mas é o jovem bibliotecário, com seus cabelos longos e dois brincos em cada orelha, que cuida, não apenas do processo de reorganização por que passa a biblioteca, como do dia-a-dia de seu funcionamento. Formado em Biblioteconomia pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), Araújo conheceu dom Eduardo quando estava preparando seu trabalho de conclusão de curso, em 2001. O tema escolhido foi justamente a importância das bibliotecas beneditinas ao redor do mundo. "Aí, quando acabei, vim até o mosteiro trazer uma cópia para presenteá-lo, em agradecimento", conta. Então decidiram contratá-lo. "Quando comecei a minha atuação, de forma alguma poderia jogar as regras da Biblioteconomia radicalmente aqui. Procurei respeitar o contexto existente e propor uma forma de organização que fosse coerente." Como a biblioteca tem um caráter particular - ou seja, é voltada para o uso interno dos monges -, o acervo é fechado. Há duas entradas ao espaço. Uma, interligada ao claustro e de uso exclusivo dos monges, pode ser acessada a qualquer dia, a qualquer horário. "Um monge tem autonomia para retirar livro daqui quando quiser", explica Araújo. "Pedimos sempre que, quando não estamos trabalhando, eles nos deixem um bilhetinho avisando, para que saibamos onde está o exemplar." O bibliotecário admite, entretanto, que nem todos cumprem essa norma. Já pela outra porta são recebidos os visitantes externos. Em geral, alunos do colégio e da faculdade, que podem utilizar os livros dali quando precisam - pesquisadores de fora também são recebidos, sob agendamento prévio. Mas nada de circular entre as estantes. O freqüentador pede o que quer e o bibliotecário - ou alguém de sua equipe - fica encarregado da procura pela obra. "De certa forma, é graças a isso que os livros antigos estão tão bem conservados assim", acredita Araújo. "É uma biblioteca com baixa circulação de pessoas." Por falar em livros antigos, o acervo beneditino conta com 581 títulos publicados entre os séculos 15 e 18. "O cuidado é tanto que, ao catalogarmos essas obras, nem utilizamos etiquetas", diz o bibliotecário, mostrando uma tirinha de papel colocada entre a capa e a primeira página de um desses exemplares, com as informações que normalmente constam em etiquetas na lombada. O livro, aliás, é a edição de 1676 da Steganographia, do monge Johannis Trithemius, que aparecia no famoso índex de leituras proibidas pela Igreja Católica. "O autor foi muito perseguido", acrescenta. Entre esses títulos há tesouros raríssimos, como seis incunábulos. São livros rudimentares, dos primórdios da imprensa, que mesclam o manuscrito com os tipos móveis. O mais antigo do acervo, de 1496, traz o Novo Testamento em quatro volumes. Há ainda um exemplar romeno de 1500 com a coleção de sermões de Pelbarti de Themefwar, um pregador húngaro. Araújo aproveitou bem a oportunidade de vivenciar esse fabuloso universo editorial preservado pelos beneditinos paulistanos. Decidiu transformá-lo em tema para seu mestrado em História, cuja dissertação será defendida amanhã, às 14 horas, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Com seus 100 mil títulos, a biblioteca principal não é a única mantida pelo Mosteiro de São Bento. Há uma outra, com 3 mil volumes, para servir ao colégio; uma de cerca de 500 obras à disposição do abade - a autoridade máxima da comunidade; e muitos são os monges que têm coleções particulares em suas celas. PARA O PAPA LER Durante as duas noites e os três dias em que esteve na cidade, em maio de 2007, o papa Bento 16 hospedou-se no Mosteiro de São Bento. Tudo foi preparado para que o líder máximo da Igreja Católica se sentisse bem acolhido. "Precisamos ficar atentos para qualquer coisa que ele precisasse. Fizemos plantão", lembra Araújo. "Mas o papa não chegou a vir para a biblioteca", conta. Com a ajuda dos monges, o bibliotecário preparou uma seleção de 30 títulos que ficaram na cela que acomodou o papa. "Em caráter museológico, estão lá até hoje", revela. O acervo foi pensado como uma miscelânea de obras religiosas, culturais, artísticas, literárias e históricas. A maioria procurava mostrar ao líder católico um pouco do panorama brasileiro. Bento 16 pôde ler, por exemplo, os sermões completos de Padre Antônio Vieira em alemão. Ou se divertir com a prosa de Machado de Assis, com os livros Dom Casmurro, Memórias Póstumas de Brás Cubas, Ressurreição e A Mão e A Luva. Mas deixou de conhecer a beleza da biblioteca dos monges paulistanos.

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