Voz contra a ditadura, rabino Henry Sobel morre aos 75 anos em Miami

Líder religioso se destacou pela defesa dos direitos humanos e atuação pelo esclarecimento da morte de Vladimir Herzog; ele morreu em decorrência de um câncer

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Por Priscila Mengue
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SÃO PAULO - O rabino emérito Henry Isaac Sobel, de 75 anos, morreu na manhã desta sexta-feira, 22, em Miami, nos Estados Unidos. Rabino emérito da Congregação Israelita Paulista (CIP), destacou-se como uma "voz firme em defesa dos direitos humanos no Brasil", como destaca nota divulgada pela família. Ele deixa esposa e filha. 

Na foto, Henry Sobel em entrevista ao 'Estado' em 2013 Foto: Nilton Fukuda/Estadão

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Sobel morreu em decorrência de complicações causadas por um câncer. O sepultamento será realizado no domingo, 24, no Woodbridge Memorial Gardens, em Nova Jersey. Leia aqui entrevista do rabino ao 'Jornal da Tarde' em 2007.

Nascido em Portugal em 1944, cresceu nos Estados Unidos em uma família de judeus de tradicional ortodoxia. Sobel chegou ao Brasil na década de 70, onde viveu por 43 anos até se mudar para Miami, em 2013. No País, teve forte atuação na ditadura militar, especialmente em relação ao esclarecimento da morte de Vladimir Herzog, não aceitando a versão oficial de que o jornalista teria cometido suicídio.

Sobel autorizou que Herzog fosse sepultado na parte central do Cemitério Israelita do Butantan, em vez da área próxima dos muros,  ala reservada a suicidas. 

Junto a D. Paulo Evaristo Arns e ao reverendo Jaime Wright, Sobel celebrou um ato inter-religioso em homenagem ao jornalista, de origem judia, em 23 de outubro de 1975, na Catedral da Sé. A celebração reuniu cerca de oito mil pessoas e foi considerada uma manifestação importante contra a ditadura militar. 

Sobel (à esquerda da foto)celebrou um ofício inter-religioso em homenagem a Vladimir Herzogdurante a ditadura militar Foto: Arquivo/Estadão

"Tenho vivido bem com a minha consciência. E passei a agir não só pelo Vlado, mas por outros torturados. A causa transcendeu. Naquele momento ganhei adversários, sim, e uma recompensa: a dos jovens judeus que me acompanharam ao culto. Eles andavam comigo na catedral. Éramos um time, jogando juntos", disse em entrevista ao Estado, em 2013. "Procurei o que era certo e Deus resolveria o resto. Isso significa ser judeu consciente. Assumir, agir, lutar se necessário. E confiar. Confiar."

"Falta buscar outros Vlados cujos direitos foram violados, Vlados humilhados em vida e depois da vida. O trabalho pelos direitos humanos está apenas começando no Brasil. Temos um longo caminho a percorrer. E, enquanto for rabino, algo que pretendo ser até o fim da minha vida, assumo o compromisso de lutar por isso. A morte de Vladimir Herzog não terá sido em vão", declarou na entrevista.

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O rabino escreveu a autobiografia Um Homem. Um Rabino, lançada em 2008 pela Ediouro, com prefácio do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Também teve parte da trajetória narrada no documentário A história do homem Henry Sobel, do diretor André Bushatsky, de 2014.

Em 2007, Sobel também falou ao Jornal da Tarde sobre a mudança para o Brasil. "Estava fascinado em vir para o Brasil, não só pela Copa, mas principalmente por causa do povo. Viajei um pouco na vida e lhe digo: não existe um povo igual no mundo", disse.

O rabino era declarado fã de futebol e torcedor do São Paulo. Ao longo de décadas, se encontrou com importantes lideranças políticas e religiosas, como Dalai Lama e os papas João Paulo II e Bento XVI.

Ao 'Estado', Ivo Herzog, filho de Vladimir Herzog, chamou Sobel de "herói". “Era um momento difícil e ele bateu pé, preferiu acreditar e esteve presente, superou essas adversidades. A gente precisa lembrar que a ditadura continuou por mais 10 anos, e ele sempre esteve firme, sempre firme, sempre presente, não recuou em nenhum momento."

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“Ao longo dos anos, (Sobel) sempre se manteve fiel aos seus valores, princípios. Acho que ele era uma dessas pessoas que jogava o jogo dos valores dele, não do contexto do momento.”

Em 2007, chegou a ser detido após furtar gravatas de uma loja nos Estados Unidos. Após o episódio, se afastou da função de rabino da Congregação Israelita Paulista (CIP), que exerceu por 37 anos. O caso teria sido determinante para a saída do Brasil, seis anos depois.

Professora emérita da USP, a socióloga Eva Blay lembra que Sobel era visto com “animosidade” e até antissemitismo por parte da sociedade, por ser “progressista”, “uma pessoa aberta, que não tinha crítica no sentido de restringir liberdades dos indivíduos, que, para ele, eram todos iguais”. 

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“Tinha um trabalho que era tão grande, tão importante junto com católicos e comunidades de outras religiões pelos direitos humanos”, comenta. “É uma perda. Nós estamos vivendo um momento difícil. É uma pessoa que vai fazer falta.”

Também professora da USP, a historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro diz que o legado de Sobel “extrapola as fronteiras” da Congregação Israelita Paulista, “deixando lições de dignidade, justiça e respeito aos direitos humanos”. “Como rabino, cidadão e amigo, soube usar sua sabedoria à bem da justiça e da democracia que, neste momento, carece de seus sábios conselhos. Assim será lembrado, marcando seu lugar na história como personagem singular.”

Presidente honorário do Congresso Judaico Latino-Americano, Jack Terpins, descreve o rabino emérito Henry Sobel como o “maior líder que a comunidade (judaica) teve”. “Não teve igual a ele. Foi um cara não existirá um segundo, era ele mesmo”, diz. “Era muito respeitado por todo mundo. Quando se falava em judeu, ligavam pra ele.”

Terpins relata que Sobel circulava entre o meio político e religioso. Ele lembra de uma visita que fez ao papa Francisco que perguntou sobre a ausência de Sobel no encontro, e também de uma experiência que teve com o rabinona Catedral da Sé. “Os padre faziam fila para pedir a benção, é uma coisa indescritível.”

Instituições e autoridades lamentam morte de Henry Sobel

Instituições religiosas e de direitos humanos, políticos e famosos lamentaram a morte de Henry Sobel nas redes sociais, tais como Ivo Herzog, os ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso, Dilma Rousseff e Luiz Inácio Lula da Silva, o governador João Doria (PSDB), a Confederação Israelita do Brasil (Conib), o escritor Laurentino Gomes e o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM). Até as 18 horas desta sexta-feira, o presidente Jair Bolsonaro não havia se manifestado no Twitter sobre o assunto.

Autor do prefácio da autobiografia do rabino, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) lamentou a notícia. "Henry Sobel, que acaba de falecer, foi um bravo na hora difícil, quando vigia o autoritarismo. Expresso por isso meu pesar."

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O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) prestou solidariedade aos familiares e amigos do rabino. "A contribuição de Sobel para a redemocratização e o diálogo entre religiões no Brasil foi incomensurável", postou no Twitter. 

A ex-presidente Dilma Rousseff (PT) também se manifestou, dizendo que o "Brasil perde um homem corajoso". "O rabino Henry Sobel defendeu os direitos humanos e, na ditadura, quando mataram Herzog, afrontou seus algozes, com uma cerimônia fúnebre na parte central do cemitário israelita, recusando assim a mentira de que o jornalista tinha se suicidado."

Doria chamou Sobel de "um grande defensor dos direitos humanos". "À família, amigos e comunidade judaica, meus profundos sentimentos de pesar", publicou nas redes sociais. Alcolumbre, por sua vez, divulgou texto em que aponta que o líder religioso foi "um notável porta-voz de nossa comunidade judaica no Brasil e estabeleceu uma ponte entre as religiões cristãs e o judaísmo".

"Sua atuação, sem dúvida, o tornou uma das maiores referências para o judaísmo brasileiro e para a nossa sociedade na luta e defesa pelos direitos humanos", diz o texto. "Nós, judeus, perdemos um grande líder espiritual. Seremos eternamente gratosa dedicação dele à nossa comunidade."

Já a Conib ressaltou que o rabino foi "um protagonista histórico na defesa dos direitos humanos no Brasil" e "uma das grandes lideranças religiosas" do País. "Sobel estabeleceu diálogo e construiu pontes entre o judaísmo e as demais religiões, participando de inúmeros cultos e eventos ecumênicos. Foi também representante da Conib para o diálogo inter-religioso. Sua atuação ajudou a inserir a comunidade judaica em um outro patamar na vida nacional", diz nota da confederação.

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