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Relator do STJ declara voto favorável à mudança de gênero em registro independente de cirurgia

Luis Felipe Salomão alegou que a recusa da mudança de sexo na identidade não respeita a liberdade de escolha individual

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Por Julia Lindner
Atualização:
Salomão é relator de recurso de uma transexualque conquistou o direito de mudar o nome em seus documentos, porém teve o pedido da retificação para o sexo feminino rejeitado pelo TJ do RS Foto: DIDA SAMPAIO/AE

BRASÍLIA - O ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Luis Felipe Salomão declarou voto favorável à mudança de gênero no registro civil independentemente da cirurgia para mudança de sexo. Salomão é relator de um recurso especial na Corte de uma transexual mulher que conquistou o direito de mudar o nome em seus documentos, porém teve o pedido da retificação para o sexo feminino rejeitado pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul por possuir órgãos genitais masculinos. Após o anúncio do voto do relator, o ministro Raul Araújo pediu o adiamento da sessão para refletir sobre as questões expostas sobre o caso.

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No entendimento do TJ, o pedido da autora da ação foi "descabido", pois, embora a alteração do nome seja justificada para evitar constrangimentos, fazer constar no registro civil a mudança de sexo, quando a pessoa ainda tem os órgãos genitais do sexo oposto, seria inserir um dado falso. Salomão, por outro lado, acredita que a identidade de gênero foi comprovada na ação através de laudo psicológico, pois desde criança a autora do processo se vê, se comporta e se identifica como mulher, sendo, portanto, do gênero feminino. O ministro alegou que a recusa da mudança de sexo na identidade não respeita a liberdade de escolha individual, prevista na Constituição.

Para o ministro do STJ, o sexo "jurídico", ou seja, baseado em conceitos morfológicos, não pode prescindir o gênero psicossocial. Salomão reforçou que as escolhas de vida dos transexuais devem ser preservadas sem interferência do Estado, em defesa da dignidade humana, da autonomia e individualidade dos cidadãos. Segundo ele, o Estado não pode condicionar o exercício da individualidade dos transexuais à cirurgia, que ainda impõe riscos à saúde como incontinência urinária e até mesmo da perda da genitália. "Somente a vontade livre da pessoa, sem interferência estatal, pode legitimar a cirurgia", declarou, ressaltando que a exigência do procedimento cirúrgico vai contra os direitos humanos. 

Ao anunciar seu voto, Salomão reforçou que a decisão do STJ será importante para criar uma jurisprudência sobre o assunto. "O registro público deve espelhar a realidade, mas aqui cabe discutir qual é essa realidade, se é a realidade psicológica ou a exterior", declarou o ministro. Salomão disse ainda que não está claro nos autos o que impossibilita a autora de realizar a cirurgia, se há inviabilidades financeiras ou de saúde, mas destacou que cada caso possui condições especiais. "É preciso preservar o princípio constitucional da pessoa humana, pelo qual cada ser humano deve ser um fim em si mesmo", disse. 

O magistrado considerou que a identidade de gênero independe dos órgãos genitais e que a anatomia não define gênero. "Para a psicologia, a cirurgia não é fundamental para o comportamento transexual", afirmou. Salomão considerou que a mudança de gênero no documento do registro civil é importante "como real fator de exteriorização de identidade de gênero" e que a mera alteração do nome no registro civil não cumpre as determinações da lei. O ministro também disse que não mudar o gênero no documento de identidade expõe os transexuais à discriminação e à violência decorrentes da transfobia.

Ele também lembrou que a fila para realizar a cirurgia através do Sistema Único de Saúde (SUS), segundo dados do Ministério da Saúde, pode levar até dez anos. Na Câmara, há um projeto de lei em tramitação, de autoria dos deputados Jean Wyllys (PSOL-RJ) e da deputada Erika Kokay (PT-DF), que obriga o SUS e os planos de saúde a custear tratamentos hormonais integrais e cirurgias de mudança de sexo a todos os interessados maiores de 18 anos, aos quais não será exigido nenhum tipo de diagnóstico, tratamento ou autorização judicial. 

Atualmente, o SUS paga a cirurgia em alguns casos, mas a lista de espera é muito grande. Para que a pessoa consiga fazer a cirurgia de mudança de sexo, é necessário que haja um diagnóstico extremamente criterioso elaborado por uma equipe de psiquiatras, psicólogos, endocrinologistas, ginecologistas e cirurgiões. Normalmente se exige um período de pelo menos dois anos como teste, em que o indivíduo é submetido a tratamentos hormonais e aconselhado a viver como se fosse do sexo oposto, para ter certeza do que quer. Só depois é permitida a realização da cirurgia.

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No Supremo Tribunal Federal (STF), há um recurso extraordinário, cujo relator é o ministro Dias Toffoli, que discute a possibilidade de alteração de gênero no registro civil de transexual, mesmo sem a realização de procedimento cirúrgico de redesignação de sexo. Em 2014, o Plenário Virtual do Supremo reconheceu, por maioria, repercussão geral do tema, porém não há prazo para que os ministros analisem o mérito da matéria no plenário. A decisão atingirá vários recursos envolvendo o tema.