Relatos da quarentena (4): A possibilidade de perder um amigo para o coronavírus

'O senhor Chen é uma das pessoas mais interessantes que já conheci. Desde a  semana passada tento contato com ele mas não obtenho respostas', escreve Caleb Guerra, um dos 34 repatriados de Wuhan, na China, em quarentena na base área de Anápolis

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Por Caleb Guerra
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ANÁPOLIS - O Estado iniciou na semana passada a publicação de uma série de relatos escritos por Caleb Guerra, de 28 anos, estudante de Literatura que morava em Wuhan. Ele está entre os 34 brasileiros repatriados da província, área mais afetada pela epidemia de coronavírus. Guerra aceitou escrever um diário com suas impressões sobre a quarentena na Base Aérea em Anápolis, em Goiás. Este é o seu quarto texto. O governo informou nesta sexta-feira, 20, que avalia antecipar a liberação do grupo.  

Funcionária em laboratório deGuangzhou, na China Foto: EFE/EPA/ALEX PLAVEVSKI

"O dia 05 de janeiro de 2019 está acabando e eu já o considero um dos piores aniversários que eu já passei na vida. Cheguei em Wuhan há menos de quatro meses e não consigo lembrar qual foi a última vez que senti uma solidão tão densa assim. Depois de algum tempo na vida, socializar não é tarefa simples.

Levanto, coloco meus livros na mochila e caminho em direção à porta da biblioteca. Ainda de dentro do saguão vejo pela janela uma grande quantidade de alunos no pátio do lado direito dos pilares que leva ao laguinho do centro e às famosas cerejeiras da Universidade de Wuhan. Ao sair, o vento frio me lembra que eu não tenho roupa o suficiente e que o caminho até meu apartamento será solitariamente congelante, mas ainda assim, como me é de costume nos últimos dias, saio pela esquerda da praça em direção ao portão principal para pegar o caminho mais longo. Sempre me considerei introvertido mas a rotina de voltar para meu quarto alugado vazio tem me machucado além do suportável. 

Passando pelas últimas árvores antes de chegar na saída, recebo uma mensagem do senhor Chen. Ele diz que viu uma postagem minha mais cedo naquele dia falando sobre meus recém cumpridos vinte e sete anos e me pergunta onde eu estou e o que estou fazendo. Tento não focar no quão patético e carente eu me sinto agora pela publicidade que fiz mais cedo sobre mim, e respondo dizendo que estou à caminho do shopping em busca de algo para comer. Então o senhor Chen, em tom de animação, me diz que tem uma surpresa e me urge a encontrá-lo na saída do metrô em vinte minutos. “Venha de barriga vazia”, diz ele. 

Não sei o que me espera na saída do metrô mas, enquanto caminho em direção à expectativa do melhor sábado que já tive desde que cheguei aqui, recapitulo na minha mente tudo o que sei sobre o senhor Chen. Eu o conheci há pouco tempo em um clube de leitura. Sentamos todos ao redor de uma mesa grande lendo clássicos da literatura chinesa escritos antes mesmo de Cristo ter pisado no mundo.

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Em meio a mestrandos e doutorandos em literatura, filosofia e vários professores desses dois departamentos, está o senhor Chen sentado sempre quieto. Ele quase nunca dá opiniões enquanto discutimos os livros porque está sempre de cabeça baixa escrevendo freneticamente em seu caderninho de anotações. Quando terminamos a aula e nos encontramos no salão, eu lhe pergunto a qual departamento pertence e ele me diz sorrindo que é “só o guardinha do prédio”, e que “conhecimento é algo precioso e transformador”, então sempre participa das classes e palestras depois do seu expediente porque acredita que não pode “desperdiçar a oportunidade de estar tão perto desse mundo e não usufruí-lo de alguma forma”. Desde então, o considero uma das pessoas mais interessantes que eu já conheci.

Quando chego às escadas da estação de metrô, vejo o senhor Chen caminhando em minha direção com um sorriso grudado no rosto maior que a lua pendurada no céu. Na mão esquerda carrega uma sacola branca. Ele se aproxima de mim, aperta minha mão e me deseja feliz aniversário, entregando a sacolinha pra mim. Me diz que acabou de cozinhar um mingau de arroz fermentado doce com tâmaras vermelhas pra me dar de presente e que se eu não me importasse, poderíamos procurar algum lugar para sentar e conversar. Caminhamos juntos até o portão sul da universidade, e nos sentamos nas escadarias do pátio.

O senhor Chen embrulhou um potinho de mingau de arroz em oito camadas de sacolinhas brancas “para conservar quente até chegar à você”, diz ele. Está frio, escuro e pouquíssimas pessoas ainda na rua, e alí sentados os dois, começo a ouvir as histórias do senhor Chen sobre sua infância humilde em uma vila pequena ao norte de Wuhan enquanto como o melhor mingau de arroz fermentado com tâmaras que já experimentei. E nesse momento, sinto como se a lua de Wuhan talvez nunca tivera sido tão ofuscada antes pela beleza da simplicidade de alguém que, mesmo com a idade avançada, senta em um campo aberto com o vento frio batendo na nuca só para fazer o aniversário de um forasteiro algo que não deve ser esquecido.

Depois de algumas semanas, o posto de trabalho do senhor Chen foi remanejado para um departamento no outro lado da Universidade. Continuei acompanhando suas publicações online, agora que ele assiste aulas de física quântica e literatura russa. Alguns meses se passariam até eu o encontrar novamente na rua da estação do metrô. Ele me pede uma foto juntos “pra guardar de recordação”, porque decidiu viajar rumo ao sul do país e realizar seu sonho de virar um monge taoísta. 

Nunca mais o vi. Desde semana passada tento contato com ele, mas não obtenho respostas. E eu não consigo parar de pensar na possibilidade do mundo ter perdido uma das pessoas mais doces de Wuhan para o covid19. No começo da semana, insisto em mandar mais uma mensagem. Fecho a nossa janela de conversa, logo um amigo me passa o vídeo de um comediante brasileiro tirando sarro com um rapaz que veio assistir ao seu show. Em meio à piadas, ele pergunta e o rapaz diz que é chinês. Gargalhadas abafam as últimas palavras do comediante enquanto ele resmunga a palavra “coronavírus” fazendo cara feia e saindo de perto do chinês alvo da comédia. Penso no senhor Chen em todos os chineses que não merecem esse tipo de chacota.

O dia 21 de fevereiro de 2020 está acabando e eu já o considero um dos melhores do ano. O senhor Chen finalmente me respondeu. “Desculpe o sumiço” - diz. “Eu voltei para a minha vila e estou como voluntário no trabalho para conter o risco de disseminação. Trabalho desinfetando as áreas públicas e ensinando as pessoas a se proteger”. Ah, senhor Chen, se o mundo pudesse vê-lo! A lua de país nenhum brilharia tanto quanto o sorriso que o senhor leva no rosto já cansado pela idade, mas mais vivo do que nunca pelo amor e compaixão de um dos heróis dessa história toda. Obrigado senhor Chen, por sempre descer das montanhas do seu retiro espiritual para tocar na vida de tanta gente aqui embaixo."

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