Reportagem de jornal inglês irrita cariocas

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Por Agencia Estado
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A reportagem publicada nesta terça-feira pelo jornal inglês The Independent, classificando no título o Rio de Janeiro como "A cidade da cocaína e da carnificina" (The city of cocaine and carnage), revoltou autoridades e pesquisadores cariocas. "São tantas as vezes que tentam denegrir a imagem do Rio, que esta é mais uma", disse o prefeito Cesar Maia, para quem o diagnóstico da violência carioca veio de "intelectuais nos pubs londrinos". Segundo Maia, em 2003 o Rio recebeu 38% dos turistas brasileiros. "Eles estão aqui (no Brasil ) e sabem diferenciar", disse o prefeito, que preferiu não comprar briga com o jornal britânico. "Os cães ladram... e a caravana passa." A antropóloga Alba Zaluar, professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e renomada pesquisadora de violência urbana do País, reagiu indignada à reportagem. "Isto é preconceito de anglo-saxão que não gosta de latinos. Mais que desinformação, é preconceito. Fazem uma comparação com países onde há conflitos étnicos, religiosos, de organizações políticas, em que a população está envolvida. Existem divisões étnicas profundas, ódios seculares. No Rio, em São Paulo, o conflito é muito mais localizado. Envolve a polícia, mas ocorre principalmente entre facções rivais. Temos problemas, nossa polícia não está preparada, há muita corrupção, mas este é um problema que existe em outros lugares também", disse Alba. Protesto O presidente da Riotur, empresa de turismo do município, Rubem Medina, disse que vai protestar formalmente. "O turismo no Rio tem impacto econômico de US$ 4,3 bilhões. Se 10% dos turistas ficarem influenciados por essa reportagem, perdemos US$ 430 milhões", calculou. O sociólogo e professor da Uerj Ignácio Cano contestou a associação do Rio com a cocaína, feita pelo jornal. "O consumo de cocaína no Rio não é maior que em outras cidades e o Rio não produz a droga. Temos um cenário de altíssimos níveis de violência, mas a cocaína está em todo lugar, não especialmente no Rio. Há guerras que causam menos vítimas que a violência, mas esta analogia costuma ser usada para dramatizar a situação", afirmou. O chefe da Polícia Civil, delegado Álvaro Lins, protestou: "Repudio totalmente que um jornal estrangeiro dê essa titulação ao Rio de Janeiro. Nós não produzimos cocaína. Os nossos números de homicídio são altos, mas ao longo desse ano vêm apresentando uma redução. O Estado faz o seu papel. Exerce a força de maneira possível. São 70 prisões por dia", disse Lins. Em nota oficial, a Secretaria de Segurança Pública do Estado disse que "a política adotada pelo governo do estado tem sido a de enfrentar o tráfico de drogas" e diz que o Estado está em sétimo lugar em número de homicídios dolosos no País. "O orçamento de R$ 2,8 bilhões, em 2004, o maior de todos os tempos para a área de segurança pública, é a prova cabal da prioridade dada pelo governo à garantia da paz à população fluminense´, diz a nota. A reportagem O texto de duas páginas compara a violência na cidade com os conflitos na Chechênia, no Sudão, na Cisjordânia, entre outras áreas de guerra. De acordo com o Independent, "muitos agora temem que a cidade esteja olhando fixamente para dentro do abismo". A matéria usa a trajetória de José Carlos dos Reis Encina, o Escadinha, assassinado no mês passado e um dos chefes do tráfico de drogas na década de 80, para mostrar o apoio de parte da população aos traficantes. Afirma que cerca de 300 pessoas compareceram ao enterro do traficante e o saudaram como "um rei". Entre outras informações sem procedência, a reportagem diz que Escadinha foi suspeito de uma suposta tentativa de seqüestro da princesa Anne durante a visita ao Brasil em 1986. Escadinha é comparado a Zé Pequeno, personagem de "Cidade de Deus", um dos filmes brasileiros mais conhecidos no exterior, sobre o tráfico na favela da zona oeste carioca. Segundo a reportagem, a violência nas favelas "freqüentemente se compara em intensidade aos conflitos na Chechênia e no Sudão" e "a algumas milhas" da praia de Copacabana, jovens traficantes de drogas "travam conflitos mortais". "Entre 1987 e 2001, aproximadamente 4.000 habitantes do Rio encontraram mortes violentas comparadas com apenas 467 na Cisjordânia, uma zona de guerra oficial", diz o texto, sem citar a fonte dos números. Segundo o sociólogo Ignácio Cano, que contesta a reportagem, a cidade tem entre 3 mil e 4 mil homicídios por ano, 80% deles com armas de fogo. A reportagem também compara "600 mil mortes por arma de fogo no Brasil de 1980 a 2000" com a guerra civil de Angola, que em 27 anos teria matado 350 mil pessoas. Não fala em dimensões de população e extensão dos dois países. A reportagem, que não tem entrevistas com nenhuma autoridade, cita declarações de pessoas identificadas como moradoras de favelas e uma entrevista com alguém apresentado como Fábio Ema, "que tem contato com alguns dos mais violentos traficantes de drogas do Rio". Também fala de um "respeitado rapper" chamado Vitor Hugo Freitas, a quem os jornalistas Tom Phillips e Thais Viallela, atribuem o seguinte depoimento: "Quem eu vou apoiar? A polícia, que eu não conheço, ou o traficante, meu amigo de infância?" O Independent informa que mil pessoas, na maioria jovens e negras, foram mortas por policiais no Rio em 2003 e cita um "morador de Jacarepaguá", bairro da zona oeste carioca, segundo o qual a polícia "entra na favela atirando", sem saber em quem, mesmo em estudantes e trabalhadores.

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