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Reprimir violentamente mercado de drogas aumentará mortes no Brasil, diz pesquisador escocês

Cientista social que está lançando livro no País sobre a guerra às drogas avalia o impacto da política proibicionista na violência praticada por grupos criminosos

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Por Marco Antônio Carvalho
Atualização:

SÃO PAULO - Johann Hari é um escocês simpático e cheio de perguntas. Cientista social formado pela Universidade de Cambridge, na Grã-Bretanha, ele decidiu, a partir da experiência traumática de parentes próximos, pesquisar a fundo as razões pelas quais há cem anos a sociedade ocidental, impulsionada pelos americanos, resolveu atacar as drogas e seus usuários.

No Brasil, o pesquisador conta o que viu quando esteve na Cracolândia, em São Paulo, e no Complexo do Alemão, no Rio Foto: TIAGO QUEIROZ/ESTADÃO

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As perguntas que Hari se fez tinham a ver com o que havia motivado a indução dessa política proibicionista e como ela vem sendo sustentada até hoje se os resultados têm levado à intensificação da violência. Ainda, ele buscava entender a própria natureza humana e sua relação com o vício. Para buscar essas respostas, ele percorreu o mundo, conversando com especialistas e pessoas diretamente envolvidas nessa guerra, de vítimas a traficantes e assassinos profissionais. O resultado dessa jornada está sendo publicado neste mês no livro Na Fissura, uma história do fracasso no combate às drogas (Companhia das Letras, 527 páginas, R$ 89,90).

O livro de Hari mostra uma política que nasceu e se alimentou do racismo, capitaneada por um americano que conseguiu espalhá-la, não pacificamente, para a Europa e América Latina. No Brasil, o pesquisador conta o que viu quando esteve na Cracolândia, em São Paulo, e no Complexo do Alemão, no Rio. “A primeira coisa que ouvi ao chegar ao Brasil, em um hotel em Ipanema, foi uma pessoa me vendendo cocaína”, disse.

Ele sustenta que o apelo para as drogas está na natureza humana, e que a real escolha a se fazer não é sobre combater ou não esse uso, mas, sim, se queremos deixar esse comércio na mão de quadrilhas armadas e violentas. “A tragédia é que tem sido vendida uma falsa solução, que, na verdade, piora o problema. Muitos dos políticos aqui estão dizendo que é necessário violentamente suprimir o mercado das drogas. Mas sabemos, a partir das experiências em todo o mundo, o resultado disso: os índices de assassinatos vão aumentar.”

Leia a seguir a entrevista que ele concedeu ao Estado nesta semana em São Paulo:

No livro, você discorre sobre o início da guerra às drogas e a sua conexão com o racismo, sobre como as pessoas queriam manter os viciados afastados e presos, principalmente aqueles sobre os quais mantinham o mais intenso preconceito. Como esse fator permaneceu presente ao longo dessa guerra até hoje?

Nas grandes sociedades, é altíssima a parcela das pessoas que já quebrou alguma lei de drogas. É um número gigantesco de pessoas. Mas não se pode prender metade da população de um país, é impossível. O que acontece em todas as sociedades onde a guerra às drogas existe é que essa política é usada pelo Estado para reprimir grupos onde se deseja que não prospere direitos.

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Pensei muito nisso aqui no Brasil. A primeira coisa que um brasileiro disse para mim quando cheguei ao meu hotel, na praia de Ipanema, foi se eu queria comprar cocaína. Todos os dias em Ipanema as pessoas estão vendendo e comprando drogas. No dia seguinte, fui ao Complexo do Alemão e vi a violência da forma mais extremada. Já estive em muitas partes do mundo, violentas, mas um soldado apontando uma arma para uma criança foi algo que só presenciei na Faixa de Gaza, e no Rio. Pensei: se a polícia fizesse isso uma única vez em Ipanema o que é feito todos os dias no Alemão seria uma notícia gigantesca para toda a mídia.

Isso se conecta com outra parte da guerra às drogas. Obviamente quando as drogas são proibidas elas não desaparecem. Imagine se estivéssemos em Chicago e decidíssemos roubar uma garrafa de vodka. Iríamos a uma loja, e se fossemos pegos, a polícia seria acionada e chegaria lá para nos prender. A loja não precisa ser violenta, intimidatória, ela têm o poder da lei a seu favor. Se na mesma cidade, tentássemos roubar um porção de cocaína, obviamente o traficante não poderia chamar a polícia, ele tem de lidar com a gente. Na verdade, ele tem de se estabelecer na vizinhança por meio da violência. Para não brigar todos os dias, é necessário que o criminoso estabeleça uma reputação ameaçadora para que ninguém seja ingênuo para afrontá-lo, pois sabem o que pode acontecer nesses casos.

A guerra às drogas cria uma guerra pelas drogas. Uma parcela significativa dos homicídios do Brasil está associada a essa disputa. E, se queremos entender quanto dessa violência poderia ser prevenida, basta nos perguntarmos onde está toda a violência envolvendo os donos das lojas de bebidas. O executivo da Budweiser cogita atirar na cabeça do dono da Smirnoff? Não parece razoável. O dono do bar da sua rua envia menores para atirar no bar da rua vizinha? O que mudou? O que mudou é a infraestrutura legal sobre essa droga.

Apesar de haver elementos objetivos sobre os problemas e as consequências dessa política, ainda hoje encontramos grande apoio popular destinado à manutenção de medidas dessa natureza. Que caminho tomar para reverter esse apelo?

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As pessoas estão certas ao dizer que como estamos hoje não dá mais para ficar. É obscena a quantidade de homicídios no Brasil, o patamar de violência e terror na sociedade. É terrível que haja tamanho vício por drogas no País. As pessoas estão certas ao dizer que não dá para continuar sendo assim e que é necessário uma mudança drástica. A tragédia é que tem sido vendida uma falsa solução, que, na verdade, piora o problema. Muitos dos políticos aqui estão dizendo que é necessário violentamente suprimir o mercado das drogas. Mas sabemos, a partir das experiências em todo o mundo, o resultado disso: os índices de assassinatos vão aumentar.

Não penso que as pessoas acreditem que essa abordagem seja maravilhosa. Penso que elas estão desesperadas e não aguentam o status quo e não há uma quantidade suficiente de pessoas contado a elas sobre as experiências que têm sido implementada em outros países.

O governo Trump, nos Estados Unidos, e o futuro governo Bolsonaro, no Brasil, são um obstáculo a mais no caminho dessa mudança?

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Temos de explicar que as alternativas ao problema não são abstratas. Por exemplo: nos anos 2000, a Suíça tinha um problema enorme nas ruas de Zurique e Genebra, onde abertamente as pessoas injetavam heroína até no pescoço. Os suíços estavam chocados. Eles tentaram operações policiais, e o problema só piorava. Até que uma nova presidente assumiu e explicou que legalização não era anarquia e caos, o que se tinha naquele momento era anarquia e caos. Existiam criminosos desconhecidos vendendo substâncias desconhecidas para usuários desconhecidos. Tudo isso nas sombras e controlado pela violência e doenças. O que legalização representa, ela disse, é retomar a ordem diante desse caos. E essa história foi contada a um país extremamente conservador.

Eles legalizaram a heroína, mas obviamente isso não significava que você poderia ir a uma farmácia e comprar heroína. Se você tivesse dependência, você se inscreveria numa clínica, onde é aplicado a heroína, acompanhado de uma enfermeira, e você sai para o seu trabalho. Os resultados do programa têm sido realmente extraordinários. Se isso tivesse acontecido há 15 anos, nenhuma pessoa teria morrido de overdose. Não há mais violência associada às drogas.

As pessoas dirão que Brasil não é a Suíça, e eu compreendo, mas aqui precisamos ainda mais que lá. A Suíça não tem dezenas de milhares de pessoas sendo assassinadas nesta guerra todo ano. Os países que conseguiram superar barreiras na guerra às drogas nem sempre são considerados de esquerda. Frequentemente isso ocorreu onde as pessoas mais se incomodaram com a desordem.

Todos podem fazer. Ninguém pensava que Portugal iria liderar a mudança sobre esse assunto, e ainda assim eles fizeram, com resultados incríveis. O que os Estados Unidos nos mostram é quão rápido a opinião social sobre esse assunto pode mudar. No dia que George W. Bush se tornou presidente, 18 anos atrás, 15% da população americana estava a favor da legalização da Cannabis. Hoje, esse número está em 70% e estamos quase chegando ao ponto onde metade da população americana está vivendo em Estados onde a Cannabis é legal. É uma mudança incrível na opinião pública. Os Estados Unidos mostram que essa mudança pode ocorrer de forma muito rápida.

Como o combate aos grupos criminosos brasileiros, como o PCC, poderia se beneficiar da descriminalização e da legalização das drogas?

É importante explicar a diferença. Descriminalização é quando se para de punir usuários de drogas, mas eles ainda têm de ir às quadrilhas para comprar o produto. Legalização é abrir um caminho legal para as pessoas comprarem. Descriminalização não fará nada para combater as gangues, apesar de representar um avanço na forma de tratamento com o usuário.

Já a legalização pode ter um papel importante. É só pensar sobre o poder que as quadrilhas tinham nos Estados Unidos no período da proibição do álcool. O que aconteceu com os grandes gangsters depois disso? Alguns faliram, outros migraram para negócios legais. Sabemos a partir de experiências tentadas que quando há um comércio legal os consumidores procurarão esses estabelecimentos, pela melhor qualidade e preço e por se evitar qualquer risco associado a essa compra.

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Você inicia o livro falando da sua própria experiência com pessoas próximas dependentes de drogas.

Escrevi o livro por razões muito pessoais. Uma das minhas primeiras lembranças é de tentar acordar um dos meus parentes e não conseguir, sem entender o porquê. Quando envelheci, entendi que havia um problema de vício em drogas na minha família. Quando comecei o livro, há cerca de oito anos, algumas das pessoas que amo estavam numa situação muito ruim e eu não sabia o que fazer e acabei escrevendo uma lista de questões para mim mesmo. As questões eram: por que iniciamos uma guerra contra usuários de droga há cerca de cem anos? A segunda era: por que continuamos se não parece estar funcionando? Também queria saber quais eram as alternativas viáveis sendo praticadas.

As questões parecem muitas e profundas. O livro consegue respondê-las?

Eu cheguei às respostas em parte ao conversar com os maiores especialistas no mundo no assunto e, em outra medida, ao sentar com pessoas cujas vidas haviam sido profundamente afetadas pelas drogas. Mantive contato com uma mistura maluca de pessoas: desde um traficante de crack em Brooklin a um mercenário de um cartéis mais violentos do mundo, no México.

A principal coisa que aprendi foi que tudo que pensamos saber sobre esse assunto está simplesmente errado. Drogas não são o que pensamos que elas são, vício também, a guerra às drogas o mesmo. A questão sobre vício foi o que me ajudou a entender a Cracolândia.

Sim, você cita o caso da Cracolândia em São Paulo, onde você esteve no ano passado e retornou neste ano. Como você avalia aquela situação?

Se você tivesse me perguntado há oito anos, quando começava a fazer a pesquisa para o livro, o que causa o vício em heroína ou crack, eu teria dito que, obviamente, o que causa é a heroína e o crack. Há cem anos, nós estamos escutando a história de que, se sequestrássemos 20 pessoas e em todos os dias por um mês injetássemos heroína, ao fim desse mês todos estariam viciados. Por uma simples razão: por pensar existir que há um anzol químico que levaria o corpo a necessitar desesperadamente da droga. E isso é o que seria o vício.

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Essa história não é necessariamente falsa, mas é um parte muito pequena do que está realmente acontecendo. Há uma coisa muito maior ocorrendo. Em Vancouver, eu conheci o professor Bruce Alexander que fez uma série de experimentos que realmente mudou a forma como pensamos o vício. Ele explicou que a história que temos na nossa cabeça de que o vício é causada por essa atração química vêm de uma série de experimentos feitos no século passado, que eram muito simples: você pega um rato, põe em uma gaiola com duas garrafas de água; numa há água, na outra o líquido está misturado com cocaína ou heroína. Se você fizer isso, o rato quase sempre irá preferir a garrafa com a cocaína e acabará se matando dentro de algumas semanas.

Isso é o que pensamos ver na Cracolândia. Nos anos 1970, Alexander olhou para esses experimentos e refletiu: os ratos estão sozinhos numa gaiola vazia, não tem nada para fazer, exceto usar as drogas. O que aconteceria se isso fosse feito de maneira diferente? Ele construiu uma gaiola que ele chamou de Rat Park, onde há amigos, outros ratos para fazer sexo, queijo, atrações coloridas, tudo que precisa. E o professor colocou as mesmas garrafas. E agora a parte fascinante: no Rat Park eles não gostavam tanto assim das drogas, eles usavam com alguma frequência, mas nunca compulsivamente e não morriam de overdose. No experimento anterior, 90% tinham overdose quando não tinham nada para dar significado na vida desses animais. Isso mudou para zero caso quando havia outras coisas interessantes para fazer. Isso nos mostra que o oposto de vício não é a sobriedade. O oposto é a conexão, é ter suas necessidades como ser humano atendidas.

Quando olhamos para a Cracolândia, aquelas são pessoas cujas necessidades foram negadas da maneira mais extrema. Elas foram horrivelmente traumatizadas, empurrados para o fundo absoluto da sociedade, sem nenhuma esperança e nenhum amor. O centro do vício é sobre não querer estar presente na sua própria vida porque é um local muito doloroso para se estar.

No Rio, em uma favela, estava conversando com um garoto de 15 anos que vivia nas ruas e me recordo do que ele me disse quando perguntei sobre o seu uso de crack: “Uso para prevenir que algo pior aconteça contra mim”. No começo, soou muito estranho. O que poderia ser pior? Mas o que ele quis dizer era que aos 15 anos, vivendo nas ruas, o crack, por um tempo, amenizava sua dor. Sem aquilo, ele poderia se matar.

Ele não estava dizendo, e eu não estou dizendo, que crack é uma boa solução. É um caminho muitíssimo ruim por razões óbvias. Mas o problema primário não é o uso da droga. O problema central é a situação na qual a pessoa se encontra. Uma vez que se entende isso se pode ver o porquê de a guerra às drogas ter falhado tão profundamente. Essa guerra é baseada na ideia de que o vício é uma falha moral e que é necessário infligir dor e sofrimento nessas pessoas para dá-las incentivos para parar. Mas uma vez que se entende que dor é a causa do vício, é o combustível do vício, é possível perceber porque essa abordagem falhou tão fortemente.

As pessoas na Cracolândia já foram atacadas. E melhorou? Não, ficou pior. O médico canadense Gabor Maté me disse que se “a punição fizesse com que os viciados largassem as drogas, não haveria nenhum dependente hoje”. Que tipo de punição as pessoas da Cracolândia já não aguentaram? As pessoas que estão ali já foram agredidas, estupradas, estão vivendo nas ruas, estão esfomeadas. O que mais há a ser feito contra elas? Se isso tivesse funcionado, não haveria mais ninguém lá. Na verdade, todos os locais onde a dependência foi reduzida fizeram exatamente o oposto. Eles desenvolveram modelos baseados em amor e compaixão.

O uso de drogas está profundamente conectado com a natureza humana. Em todas sociedades que já existiram as pessoas encontraram formas de se intoxicar. Nunca vamos nos livrar desse impulso, é como tentar se livrar do desejo sexual. A questão não é sobre permitir ou não o uso de drogas. A escolha é: queremos que essas substâncias sejam controladas por criminosos ou por licenças legais de comércio? Essa é a escolha.

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