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Reveladora de histórias

Silvia Valentini criou a primeira revista mensal para deficientes visuais do País, o ?Boletim Ponto a Ponto?

Por Vitor Hugo Brandalise
Atualização:

De repente, se acendem as bolinhas do braile. É a artista plástica Silvia Valentini aproximando, do abajur que ilumina a conversa, uma folha de papel recém-marcada com a linguagem do tato. "Você vê, certo? Não é bom saber o que se passa ao redor? Pois essa sensação também é possível a quem não enxerga, basta possibilitar o acesso", ela diz, revelando sua razão maior. O exemplo serviu para apresentar, a quem nada entendia, pequena parte do mundo criado por ela. Nesse mundo, todos os meses, as bolinhas do braile são prensadas no papel em escala industrial - para levar, a cerca de 2 mil cegos do País, sentimentos e sensações que, não fosse a iniciativa da artista, seria impossível experimentar. Ouça a íntegra desta reportagem Silvia é a criadora do Boletim Ponto a Ponto, a primeira revista mensal para cegos do Brasil. Editada em braile, com ilustrações em alto-relevo, a revista tem tiragem de 2 mil exemplares e é distribuída para pessoas com deficiência visual e instituições interessadas, como as 200 bibliotecas públicas inscritas no mailing do projeto. "Já imaginou querer aprender e, simplesmente, não ter acesso ao conhecimento? É essa a situação de muitos cegos no Brasil. E é para suprir essa necessidade que vem o Ponto a Ponto", diz a artista, que não tem deficiência visual além de uns poucos graus de miopia. O Ponto a Ponto - de páginas quase inteiramente brancas, pontilhadas de braile de cima a baixo -, é editado por equipe pequena, de cinco pessoas, coordenadas por Silvia. Na fase de seleção de reportagens, reproduzidas de acordo com as leis de direitos autorais, o trabalho é quase artesanal, realizado geralmente na casa da artista, em Cotia. "Fico escondidinha aqui, procurando assuntos. Leio até bula de remédio pensando no Ponto a Ponto, uma delícia escolher o que vai levar conhecimento a quem tem tão pouco acesso a ele", afirma Silvia, que acaba de completar 60 anos. No fim, a seleção do conteúdo da revista, cuja primeira edição foi lançada em setembro, acaba ficando mesmo a cara de Silvia - mulher questionadora, de olhos vivos, que despreza o factual, o perecível, e prioriza artigos que permaneçam na memória do leitor. O Ponto a Ponto, impresso em papel grosso, de gramatura acima de 90, deve ser guardado como um livro. Tem 60 páginas, divididas em dez seções, com prioridade para meio ambiente e ciência. A revista para cegos também dá destaque às imagens, em cuidadosas ilustrações feitas em relevo. Na edição de outubro, decidiu mostrar a seu público como é um singelo carrapato. "É a beleza de ?enxergar? as coisas simples com os dedos, e guardar na memória para conseguir lembrar do que ?viu?." Em contraste com os pontos brancos em relevo, as primeiras páginas da revista são impressas também em tinta. "São apenas duas seções, Sumário e Editorial. O Editorial serve para apresentar a edição. Já o Sumário... O Sumário eu fiz questão", ela baixa o tom da voz, como se contasse um segredo. Para que um índice de reportagens impresso em tinta, se todo o conteúdo está escrito em braile, ininteligível à maioria? "Desde a infância, cegos ouvem pessoas próximas contarem histórias que lêem nos livros. Agora, se somente cegos entendem o que está escrito, como fica?", questiona, sorriso maroto no rosto. Por opção de Silvia, na leitura do Ponto a Ponto, os papéis de ouvinte e contador se invertem totalmente. PIONEIRA Não é de hoje que Silvia dedica seu tempo a ajudar cegos a entenderem o mundo por meio dos dedos, com as 63 combinações possíveis da linguagem em braile. Em 1994, quando a paulistana ainda morava no Rio, ela fundou o primeiro Clube Brasileiro de Correspondência em Braille, projeto pioneiro na América Latina. Em pouco tempo, acabou rodando o mundo - nos quatro anos que durou, alcançou cerca de 400 pessoas, em 40 países. "Aluguei uma caixa de correio e postei o número em um anúncio na Revista Brasileira para Cegos (outra publicação em braile que circula no Brasil, do Instituto Benjamin Constant, no Rio, com freqüência trimestral). Depois, anunciei em uma revista uruguaia e em outra americana", conta. Com as cartas em mãos, ela cruzava perfis compatíveis entre participantes e repassava os endereços - somente o primeiro passo para correspondências duradouras, que acabaram até em casamento. "A caixa de correio estava sempre cheia. Chama a atenção a carência desse serviço aqui." Ao longo dos quatro anos em que coordenou o clube, Silvia recebeu cerca de 3 mil cartas de pessoas cegas, agradecendo pelo serviço. "Há histórias maravilhosas, como um senhor de Portugal, único cego de uma pequena cidade, um dentista brasileiro que tratou a distância um cantor que sofria de bruxismo, um estudante africano que queria vir ao Brasil ajudar nas ?organizações? Ponto a Ponto." Poucos deles imaginavam, conta a artista, que era ela quem fazia tudo praticamente sozinha. Silvia aprendeu braile no Clube da Boa Leitura (CBL), audioteca carioca com cerca de 3 mil títulos, onde prestava serviço voluntário. O trabalho consistia em remendar fitas K7 gastas por tanto uso. Desafiada por uma deficiente visual, pegou um alfabeto em braile, para decifrar a "massa de pontinhos que parecia uma coisa só". "Foi incrível. Em dez minutos, saí escrevendo. Chego a pensar que fui cega em outra vida." Apaixonada por máquinas - o trabalho preferido da artista plástica eram gravuras em metal -, Silvia ganhou, meses depois de ingressar no CBL, seu primeiro equipamento para escrever em braile. "É uma pequena máquina dinamarquesa com que transcrevi os primeiros artigos para braile, para mandar a amigos do clube. É uma maquininha simples, bem diferente das que hoje rodam o Boletim." Hoje, os 2 mil exemplares do Ponto a Ponto - um dos 263 projetos escolhidos pelo programa Petrobrás Cultural - são impressos na Fundação Dorina Nowill, que conta com o maior parque gráfico de produção em braile da América Latina. "Transcrevia escondida, na minha máquina de 2 quilos, e hoje há esse parque todo conosco", comemora. "Pena que sinto falta de espaço, para mostrar tudo o que gostaria." Ela se refere ao número de páginas da revista, hoje em 60. "Imprimimos somente seis ou sete artigos por mês, pois uma lauda impressa em tinta corresponde a quatro ou cinco em braile. Estou à procura de colaboradores." O que tanto incomoda Silvia, ela conta, é o fato de nós - todos nós que conseguimos ler esta página - podermos passar em qualquer banca de revista e encontrar uma profusão de publicações. Cegos, não - eles lêem o Boletim em um, dois dias. E acabou. "Não é injusto? Poderíamos ajudar a equilibrar um pouco essa balança." É a próxima missão de Silvia Valentini, no longo caminho da inclusão.

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