Salões de barbeiro resistem ao tempo e têm clientes fiéis

Apesar de cada vez mais escondidos, eles se orgulham de ser clubes do Bolinha, com direito até a engraxate

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Por Valéria França
Atualização:

A visão é nostálgica. Na esquina das Ruas Turiaçu e Cardoso de Almeida, em Perdizes, na zona oeste de São Paulo, o Salão Marília, inaugurado em 1951, mantém as portas abertas para os paulistanos que não abdicam de hábitos que, apesar de antigos, ainda conservam o charme. Por trás das portas de vidro, uma equipe de nove barbeiros, três manicures e um engraxate trabalham a todo vapor, como nos áureos tempos, quando barba era só feita à navalha. Poucos são os salões da cidade que sobreviveram tão bem aos aparelhos descartáveis. Um deles é o do Jockey Club, na sede do centro, que conserva ainda as colunas de mármore e o vidro de cristal da porta com o logotipo do clube. Mas o salão do Jockey é restrito aos sócios. Já no Marília (3865-1065) qualquer um pode entrar, "contanto que não seja mulher", diz o proprietário Henrique Scorcione Júnior, filho do fundador, à frente dos negócios há 20 anos. "Não adianta insistir. Não atendemos mulher. Aqui é um lugar só para homens", diz Júnior. Entre as revistas à disposição no balcão, Playboy e VIP. "Aqui todo mundo gosta de falar de futebol. De política também se fala, mas nem tanto. Ninguém quer esquentar a cabeça, mas aproveitar o tempo para jogar conversa fora, fazendo piadinhas. Coisas de homem." Há outros salões espalhados pela cidade, menores, sem tanta estrutura, mas que também fazem às vezes de clube do Bolinha do bairro - e até por isso fazem sucesso. No Paraíso, zona sul, o barbeiro Paschoal Piccin, de 77 anos, chegou à região em 1955. E montou uma barbearia com seu nome, Salão Piccin (3052-2270). "Na redondeza, havia apenas três prédios", diz ele, hoje, cercado por espigões. Filho de italianos, nasceu em Torrinha, interior de São Paulo. "Na minha cidade, os jovens tinham duas opções para ganhar dinheiro: ser alfaiate ou barbeiro. Eram profissões muito respeitadas." Piccin começou a trabalhar aos 9 anos. De tão baixinho, cortava cabelos e fazia barba com os pés sobre um caixote de cebola. "Trabalhava além do expediente para conseguir afiar as navalhas para o dia seguinte." Com os joelhos comprometidos por uma artrose, provocada por horas contínuas de trabalho em pé, Piccin aposentou a navalha, mas ainda fica o dia todo na barbearia do Paraíso, controlando o caixa e os quatro funcionários. Dois deles vieram de barbearias da região que fecharam as portas. Os outros dois aprenderam o ofício ali. A clientela é muito variada. Atendem senhores de idade avançada, que aparecem para aparar os poucos cabelos que restaram, jovens profissionais liberais, estudantes e até crianças. Na zona oeste, uma das atrações é o espanhol Júlio Fombellida Pita, de 72 anos, que veio da Galícia, em 1953, encontrar o pai, que já estava em São Paulo e era barbeiro. "Trabalhei num dos salões mais chiques da cidade, o Imperial, na Rua Conselheiro Crispiniano, ao lado do Cine Marrocos", diz Pita, que passou por vários salões do centro. "Era outro centro, com pessoas elegantes, que estacionavam o carro e deixavam as chaves no contato." Pita teve cliente famosos como o comediante Mazzaropi, o apresentador Chacrinha, o autor e diretor de teatro Procópio Ferreira e, mais recentemente, o global Tony Ramos. Ele conserva uma clientela vip, de advogados, empresários e jornalistas. O salão é acanhado. Não tem engraxate nem manicure. Mas os clientes continuam fiéis ao corte e às histórias do barbeiro espanhol, que são muitas. "Teve um dia que um cliente desapareceu do salão. Pouco depois, soube que ele havia sido preso. Estávamos na ditadura. Depois de meses, apareceu. Olhou dentro do meu salão, que estava cheio, e saiu correndo. Pensei: não queria esperar. Quando eu o reencontrei, ele me explicou que naquele dia eu estava cortando o cabelo de seu torturador." Hoje, só chega ao salão de Pita os amigos dos amigos, não porque ele rejeite cliente, mas pelo fato de o salão estar numa sala dos fundos no térreo de um prédio, em Santa Cecília, no centro. Não há placa na porta e é preciso marcar hora (3662-3032).

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