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‘Sempre tentaram me caracterizar como um bichinho engraçado, diz agente de saúde

Ciara Pitma revela que se sentiu rejeitada na adolescência e que foi obrigada a se prostituir

Por Isabela Palhares e Juliana Diógenes
Atualização:
Ciara Pítma Foto: Gabriela Biló

Adolescência é uma fase de descobertas e acho que é onde a gente busca se conhecer. Não nego que tive alguns problemas, algumas dificuldades. Por exemplo, papai disse que nasceu homem tem que morrer homem. Questões de sexo mesmo, questões de religião, questões de orientação sexual. Isso foi muito difícil. Vovó foi perdendo a visão, ela era costureira e muito cedo eu tive que ter responsabilidade dentro de casa. Não é fácil com 10 anos você já ter que dar remedinho para a vó na hora certa, ter que levar para a Igreja, ter que cuidar da casa e ter que cuidar do outro irmão.   Minha diversão foi mais no final de semana, com alguns amigos. Poucos. Eu não saía muito de casa. Saía mais para a Igreja, que foi a minha segunda família. Não tive uma vida muito dispersa nesse sentido. Era de casa para a Igreja. Na escola, eu não nego: o meu ensino fundamental foi muito chato. 4ª 5ª, 6ª série foi muito difícil. Eu via meus amigos se modificarem no corpo, na aparência, e eu ficar congelada por ter cabelinho grande, por ter um jeito diferente. Era sempre o alvo da chacota e da zoação.   Fui muito presente na Igreja. Trabalhei com grupos de perseverança, fazendo atividades dominicais na Igreja. Aprendi muito, cresci muito. Depois, na escola, foi difícil conciliar a escola e cuidar da casa. Sempre era “a bichinha”, “o viadinho”. Bullying, como chamam hoje. Eu era “um demônio”. A Igreja foi a minha segunda família, mas também tive que sair por causa da minha sexualidade. Um lugar que eu acho que deveria ter me agregado e não ter desperdiçado. Já não queria estar na Igreja e tinha dificuldade na escola, então não era gente. Onde era o meu lugar?   Eu tinha 14 anos e já ia em loja procurar emprego. Sempre ouvi de gerentes de repartições que não queriam ‘viados’ na loja deles. “Essa bibinha”, “esse menino-menina”, “essa sapatão”. Quando mudei o cabelo, eu via muito isso. Sempre tentavam me caracterizar como se eu fosse um bichinho, sabe? Um bichinho engraçado. Uma hora gay, uma hora lésbica. Ou como aberração. O que eu sempre sofri foi uma rejeição.   Ai, é chato. Machuca uma pessoa olhar para você e dizer que eu não sou nada, que não sou ninguém, que nunca vou ter nada, que nunca vou ser ninguém na vida e que tenho que viver na noite, que tenho que me limitar, que sou uma pessoa inútil e só sirvo para sexo. Isso foi o que mais martelou a minha cabeça e martela até hoje.   Porque eu não gosto de fazer programa. Não gosto de estar deitada com um cara que eu nem conheço, que eu nunca vi nada, e amanhã tenho que estar com outro e com outro… Eu só quis uma vida normal: estudar, trabalhar. Fui obrigada com 16 anos a me prostituir. Eu não queria fazer aquilo. Não queria estar indo para posto, não queria sair com caminhoneiro e ter que largar a minha cidade natal.   Tive que vir para cá (São Paulo) e vai fazer cinco anos agora em agosto. Mas eu vim em busca de trabalho e me realizar enquanto transexual. Colocar minha prótese, mudar meu nome. O meu nome, graças a Deus tive uma notícia ótima, já vou entrar em andamento. E a minha prótese já estou vendo isso também depois que estiver com a minha estabilidade.   Outra vertente que as pessoas têm que entender é que a gente passa por processos. A gente faz hormonioterapia, que não é fácil. Tomar hormônio afeta com tudo. Não é só corpo. É corpo e mente. E não adianta a gente se negar. Isso é a cultura do falo: “você é aquilo que você tem nas pernas” ou “você é aquilo que o papel diz”.   Tire um dia e faça um teste: inverta seu sexo. Um dia, atua como personagem. Atua com um dia de travesti. Se pinta, se maquia e enfrenta a sociedade. Porque quando você enfrenta e você sente o que você passa na prática, aí você sabe. É muita fobia, muita rejeição, é só vivenciando mesmo na prática. Para quebrar esse tabu, essas ideias que foram implantadas não sei de onde, a gente pode se colocar no lugar do outro. Nesse intervalo do tempo, você vai sofrer alguma coisa.

Temos que apostar na diversidade. Estamos para somar, apostar na união. Enquanto a gente não pensar em ser mais solidário e em construir junto, a gente não vai ter um País bom. Vai continuar a se digladiar todo dia.

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