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Sorvete de cheesecake

Por Antonio Prata
Atualização:

Diz a lenda que Joe Kennedy, pai do presidente, pressentiu o crash de 29 ao receber dicas de investimento do garoto que lustrava seus sapatos. Se até o engraxate estava especulando - especulou o especulador - era porque a especulação já tinha ido muito mais longe do que qualquer especulador poderia ter especulado. Eu, modéstia à parte, também farejei que algo ia mal na economia alguns meses atrás, ao entrar numa grande videolocadora e dar de cara com um jogo de panelas (linha Firenze, revestimento de teflon), seis pares de meias brancas (made in China, R$ 10) e uma seção inteira dedicada às lingeries. Quando você acha calcinhas onde buscava Hitchcock, só pode concluir que o mercado está completamente desregulado, não? Na verdade, eu suspeitava que as coisas andavam confusas desde uma remota tarde no século 20 em que a banca do seu Arlindo passou a vender água-de-coco. Em pouco tempo o jornaleiro comprou um freezer vertical e começou a oferecer também cervejas, refrigerantes e bebidas isotônicas, onde antes havia apenas jornais e revistas, abalando assim um dos pilares de meu pensamento infantil - a crença de que uma coisa era uma coisa, outra coisa era outra coisa. Preocupado com a quebra de meus paradigmas, comecei a buscar alguma explicação no papo dos adultos. Falavam sobre a globalização, o fim das fronteiras e a abertura dos mercados. Era isso: seu Arlindo estava abrindo um mercado. E não só ele, percebi, ao reparar no que acontecia com os postos de gasolina: ali, naquela casinha onde antes funcionava uma borracharia, com uma banheira de água imunda e um pôster da Maria Zilda arrancado de uma Playboy de 85, passaram a vender lasanhas congeladas, papel higiênico, canetas hidrocor e outros itens de primeira, segunda ou terceira necessidade. O que era o tal fim das fronteiras só entendi nos anos 90, não com o desmantelo da Iugoslávia, mas ao deparar-me com um saco de batatas fritas sabor churrasco. Depois vieram o sorvete de cheesecake, o chocolate de cookies e a pizza de cachorro-quente (e ainda crêem que o mercado se regula?!), mas nem me abalei: já estava claro que uma coisa poderia ser outra coisa e, como vimos nos últimos meses, era possível todas as coisas transformarem-se em coisa nenhuma. Quando entrei na locadora, portanto, e deparei-me com panelas, meias e calcinhas, entendi que aquele era o apogeu do movimento iniciado lá atrás, com os cocos do seu Arlindo, e que logo viria a débâcle. O pai do Kennedy, em 29, vendeu as ações e comprou terras e imóveis. Eu, dentro de minhas limitações, apenas aluguei um filme e levei um daqueles pacotes com seis meias, pela incrível bagatela de R$ 10. Meias brancas, médias e lisas, como convém. Afinal, em momentos de incerteza, temos de nos refugiar na tradição.

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