STF valida artigo do Código de Trânsito que considera crime a fuga de local de acidente

Ao todo, 131 processos estavam suspensos aguardando a definição da Suprema Corte sobre o tema; caso teve repercussão geral reconhecida e deverá balizar episódios similares

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Por Teo Cury e Rafael Moraes Moura
Atualização:

BRASÍLIA - O Supremo Tribunal Federal (STF) validou nesta quarta-feira, 14, um artigo do Código de Trânsito Brasileiro (CTB) que prevê a detenção de seis meses a um ano ao condutor que se afasta do veículo do local doacidente “para fugir à responsabilidade penal ou civil que lhe possa ser atribuída”, independentemente de haver vítimas ou não. 

Artigo do Código de Trânsito Brasileiro prevê a detenção de seis meses a um ano ao condutor que se afasta do veículo do local do acidente Foto: Pixabay / reprodução

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Por 7 votos a 4, os ministros entenderam que o dispositivo não fere a Constituição, em meio a questionamentos sobre decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul  (TJ-RS) que absolveu um motorista que fugiu do local de acidente, sob a alegação de que ninguém está obrigado a produzir prova contra si mesmo.

Para o relator do caso, ministro Luiz Fux, a fuga é “absolutamente indefensável”. “A Constituição promete, em nome do povo, uma sociedade justa e solidária. Como que se pode criar uma sociedade justa e solidária admitindo a conduta de quem se afasta do local do acidente para fugir da responsabilidade penal e civil? É absolutamente impossível que uma ordem jurídica não imponha a criminalização desta conduta”, disse o relator.

O ministro Alexandre de Moraes acompanhou o entendimento do colega, ressaltando que há uma “verdadeira epidemia” de acidentes de trânsito no País e lembrando que o artigo 305 do Código de Trânsito Brasileiro tem por objetivo obrigar que o condutor envolvido no acidente permaneça no local para que as autoridades possam apurar o que ocorreu.

“O fato de o artigo 305 estabelecer uma vedação ao condutor do veículo de se afastar do local do acidente não o obriga ao ficar a ter que confessar uma responsabilidade, ou a ter que abrir mão de seu direito ao silêncio, não obriga a ter de participar de uma reconstituição imediata, a realizar exames obrigatórios. Eles têm a obrigação, como condutores de veículos, de resguardar local dos fatos e aguardar a apuração.”

Moraes lembrou que estudos técnicos mostram que a partir da preservação do local do acidente e da análise deste local para apurar o episódio, a prevenção se torna mais fácil. “Não só apurar eventuais responsabilidades dos envolvidos, mas também para se evitar que isso volte a ocorrer”, frisou o ministro.

O ministro Edson Fachin destacou em seu voto que, em 1981, o Brasil passou a adotar regras estabelecidas por uma convenção de trânsito celebrada em Viena, que trata, entre outros pontos, sobre o comportamento do motorista em caso de acidente “Como o Brasil internalizou-a, portanto, é lei no direito interno a ser considerada para a solução dos casos submetidos à prestação jurisdicional”, frisou Fachin. 

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“Todos nós brandimos armas contra a morosidade da Justiça, a dificuldade de responsabilização, os lapsos temporais alargados que podem se converter em impunidade. Este tipo vem na direção oposta. E, portanto, me parece que é constitucional”, disse Fachin, acompanhando o relator do caso.

O ministro Luís Roberto Barroso  ressaltou que “no atual estágio da condição humana, o comportamento ético precisa de um incentivo normativo”. “Eu não me animo a retirar do Código Penal uma norma que acho que dá o incentivo correto às pessoas pararem para socorrer ou permitir a reconstrução do fato, assegurado o direito de permanecer em silêncio para não se auto incriminarem.”

Barroso disse ainda que considera o dispositivo compatível com a Constituição, porque fugir após atropelar, causar acidente ou ser parte de um acidente não são condutas compatíveis com o ideal constitucional de uma sociedade justa e solidária. "A permanência no local do delito é imunizada de qualquer intervenção penal sobre a pessoa para dar incentivo a esta prática solidária e minimamente humana de socorrer alguém. E o ato de socorrer, diante de fato de trânsito, deve ser atenuante relevante numa demonstração de culpabilidade."

Já a ministra Rosa Weber afirmou que o artigo 305 do CTB não ofende a Constituição Federal e que a exigência de permanência do condutor no local do acidente permite sua identificação, facilita a responsabilização penal e civil e “apresenta-se como importante fator de solidariedade a incrementar a proteção à vida e integridade física da vida”.

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“Eu compreendo que o artigo 305 em exame, ao expressar a preocupação do legislador federal com a administração da justiça, com a segurança no trânsito e, por conseguinte, com a preservação dos direitos - a integridade da vítima, a incolumidade pública, a saúde dos usuários da vias públicas -, não malferem os princípios da ampla defesa, da auto incriminação e da igualdade.”

A ministra Cármen Lúcia, por sua vez, entendeu não ser possível considerar inválido o dispositivo por afronta a princípios fundamentais. “Não considero ter havido aqui afronta ao princípio da proporcionalidade e excesso do legislador em face da garantia constitucional que permanece hígida e considerando o princípio da responsabilidade que é de todo cidadão em relação aos outros porque não dá para como se deixar de entender o direito como instrumento de acatamento ao princípio da responsabilidade que é própria da convivência social", avaliou Cármen. 

Para o ministro Ricardo Lewandowski, a presença do condutor no local do acidente, por si só, não significa autoincriminação, podendo até constituir um meio de autodefesa “na medida em que constitui uma oportunidade para esclarecer circunstâncias do acidente que podem militar em seu favor”. 

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Quatro ministros têm votos contrários

Em sentido contrário se posicionaram os ministros Gilmar Mendes, Marco Aurélio Mello, Celso de Mello e o presidente do STF, ministro Dias Toffoli, que alegaram que o artigo do Código de Trânsito Brasileiro é inconstitucional.

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Para Gilmar Mendes, a permanência do motorista no local do crime “inquestionavelmente contribui para a comprovação da autoria, assentando seu envolvimento com o fato em análise”. “A obrigação de permanecer no local do crime se equipara a um suposto dever genérico de apresentação às autoridades sob pena de cometimento de nova infração penal. É certo que indivíduo pode escolher essa via, inclusive para aproveitar eventuais reduções de pena por arrependimento eficaz, confissão, etc. Não obstante, a criminalização da opção do réu de não se apresentar às autoridade, a meu ver, viola o núcleo duro do direito fundamental de não autoincriminalização.” 

Na avaliação de Marco Aurélio, “o passo foi demasiadamente largo dado pelo legislador no que previu esse tipo penal partindo do simples pressuposto de que deveria ficar o condutor no local do acidente”. “Nós não temos previsão dessa largueza sequer quanto aqueles que hajam realmente praticado crime”, observou.

Decano da Corte, o ministro Celso de Mello entendeu que o fato de o condutor do veículo poder permanecer posteriormente em silêncio não afasta violação ao direito à não autoincriminação. “Resta claro que a proibição imposta pelo tipo penal definido pelo artigo 305 do CTB ao determinar que o condutor permaneça no local do fato impõe uma obrigação de colaboração com a persecução penal contribuindo para sua vinculação com a autoria potencialmente criminosa”, afirmou.

131 processos aguardavam definição do STF

A discussão sobre o crime por fuga do local de acidente foi debatida em um caso de relatoria do ministro Luiz Fux, que teve repercussão geral reconhecida, ou seja, o entendimento firmado pelo STF nesta tarde deverá balizar casos similares. Ao todo, 131 processos estavam suspensos aguardando a definição da Suprema Corte sobre o tema.

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O caso analisado pelo STF girou em torno do taxista Gilberto Fontana que, na madrugada do dia 2 de novembro de 2010, saiu de um bar da cidade de Flores da Cunha (RS), dirigindo um Palio Weekend, quando entrou na contramão e atingiu o veículo da auxiliar contábil Daniela Manfron, que estava estacionado em uma via pública. Com a batida, o pneu, o pára-choque, a roda e lateral esquerdas do veículo de Daniela ficaram danificados.

Gilberto fugiu do local em alta velocidade, sendo seguido por policiais militares, que o abordaram quando o motorista entrava em sua residência. De acordo com o boletim de ocorrência, o condutor apresentava sintomas de embriaguez e disse que não tinha percebida a colisão.

Ele foi condenado em primeira instância a oito meses de detenção e recorreu ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS), que concluiu pela absolvição, entendendo que ninguém é obrigado a produzir provas contra si. Segundo o TJ-RS, o dispositivo do CTB é inconstitucional, porque a simples presença no local do acidente representaria violação da garantia de não autoincriminação.

Ao entrar com recurso no STF, o Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul argumentou que o artigo 305 não representa obstáculo à imputação do crime de fuga, porque os direitos à não autoincriminação e ao silêncio permaneciam incólumes. De acordo com o MP gaúcho, a permanência do condutor no local em que ocorreu o acidente não se confunde com confissão de autoria ou reconhecimento de culpa.