Tragédia dos homicídios é resultado de sucessão de erros

Pesquisadores analisam o aumento da violência no País e a relação com a expansão e briga entre as maiores facções brasileiras

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Por Bruno Paes Manso e Camila Nunes Dias
Atualização:

Os dados do Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública colocam São Paulo numa situação inusitada. Conhecida junto com o Rio de janeiro como uma das metrópoles mais violentas do mundo nos anos 90, em 2017 os paulistas assumiram a condição de estado com menor taxa de homicídios do Brasil (10,7 por 100 mil habitantes), bem abaixo do segundo colocado, Santa Catarina (16,5 por 100 mil). O contraste fica ainda maior quando olhamos para o topo do ranking: o Rio Grande do Norte, que era referência de tranquilidade e sossego, sofreu uma escalada de homicídios e alcançou uma taxa mais de seis vezes maior do que a paulista. Explosão de violência semelhante ocorreu em outros estados do Norte e do Nordeste.

Rebelião no Compaj deixou 56 mortos no dia 1º de janeiro de 2017 Foto: DANIEL TEIXEIRA / ESTADAO

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Nesse mesmo período de diminuição de homicídios, São Paulo se consolidou como um dos principais mercados consumidores de droga do mundo – principalmente de cocaína e crack. O lucro no tráfico paulista se multiplicou e seus integrantes passaram a ter um protagonismo nacional inédito. O Primeiro Comando da Capital (PCC), gangue prisional nascida em 1993, teve um papel importante na articulação dessa rede de vendas, funcionando como uma espécie de agência reguladora do mercado criminal paulista, mediando contratos e prazos, organizando pontos, punindo desviantes.

Esse incremento na gestão do crime diminuiu o custo dos negócios (quanto menos conflitos, maiores os ganhos), ampliou a possibilidade de planejamento e a previsibilidade, diversificou as parcerias comerciais, que alcançaram os centros atacadistas de produção e distribuição na América do Sul. A popularização dos celulares nos anos 2000 e sua chegada nos presídios foi instrumento fundamental para diversificar esse networking, permitindo um aumento no abastecimento de drogas nos demais estados transformando a cena criminal brasileira.

Esse processo recente, ocorrido e articulado a partir das prisões superlotadas de São Paulo e dos outros estados, está descrito no livro A guerra – ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil, que foi lançado esta semana pela Editora Todavia.

A expansão do PCC para esses mercados estaduais produziu resistências dentro e fora dos presídios e promoveu novas alianças e rivalidades locais. Facções surgiram de Norte a Sul, compartilhando desde gírias até estratégias para competir por mais lucro no mercado do crime.

Foi preciso se acostumar com os novos nomes desta cena, como Okaida e Estados Unidos na Paraíba, Os Bala na Cara no Rio Grande do Sul, Família do Norte no Amazonas, Sindicato do Crime no Rio Grande do Norte, Bonde dos 13 no Acre, Guardiões do Estado no Ceará, para citar algumas delas. O crime se armou e houve disputas pela hegemonia nas vendas, promovendo cenas trágicas como as ocorridas durante as rebeliões prisionais do começo de 2017, além de chacinas e homicídios. Filmagem de tortura e assassinatos de rivais passou a povoar algumas redes sociais, chegando sem filtros a milhares de brasileiros.

A articulação do crime a partir das prisões – com estatutos, regras, estratégias, salves, etc –virou um modelo nacional de liderança e negócio para outros grupos, tanto de aliados como de rivais do PCC. Nos presídios federais, lideranças de grupos que disputavam em seus estados espaço com os paulistas, acabaram se aliando com o Comando Vermelho, que ampliou também seu alcance nacional e se tornou o principal rival do PCC. O crescimento dos homicídios brasileiros é um dos sintomas mais evidentes dessas mudanças.

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Esse quadro, contudo, não surgiu do nada. Como tentamos descrever a partir das histórias contidas no livro, a cena atual foi sendo formada como um dos efeitos colaterais da máquina de guerra criada para tentar controlar o crime, colocada para funcionar nas últimas décadas.

A aposta feita pelos governos no policiamento ostensivo dos militares nos bairros pobres para realizar prisões em flagrante encheram as prisões de pequenos traficantes ou mesmo de usuários, ajudando a fortalecer a liderança das facções.

As guerras cotidianas e custosas produziram ainda violência generalizada entre jovens pobres – muitos mortos em ações policiais truculentas – e promoveram a revolta e a raiva que o crime precisava para articular seu discurso antissistema: o “crime fortalece o crime”; os “inimigos estão no Estado, que quer exterminar os pobres” fazem parte dos motes das facções.

Junto com ações espetaculosas da polícia e com a superlotação dos presídios, foi importante para as autoridades interditar o debate sobre os equívocos dessas ações. Primeiro, insistindo na ideia de que o PCC não existia, o que só passou a ser admitido oficialmente em 2001. Depois, tentando constranger os debatedores, como se a discussão sobre o fortalecimento da facção e sua capacidade de articulação fosse o mesmo que fazer apologia ao crime.

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Dessa forma, aquilo que era visto como remédio, foi se tornando um veneno. O crime se fortaleceu aproveitando-se das brechas e dos erros de políticas públicas. Ao mesmo tempo, pouco se investiu na compreensão do funcionamento dessa indústria – “onde o dinheiro de seus integrantes é depositado?”, “onde é lavado?”, “quais as rotas principais?”, “como as redes se articulam?”, “de onde vem as armas?”. Essas respostas dependem da troca de informações entre as diversas instituições de inteligência, capazes de levantar inclusive informações financeiras, mas a articulação não ocorreu como deveria.

A tragédia dos quase 64 mil homicídios no Brasil é, portanto, o resultado mais gritante desses erros. O Estado, como se sabe, deve ser visto como uma instituição que abre portas, promove justiça e direitos, não como um perseguidor em guerra contra os pobres. O desabafo de Marielle Franco, assassinada no dia 14 de março depois da equivocada intervenção federal que meses depois aumentou a violência no Rio, continua a ressoar. Um dia antes de morrer, ela havia denunciado a violência policial em sua conta no Twitter. “Mais um homicídio de um jovem negro que pode estar entrando para a conta da PM. Matheus Melo estava saindo da igreja. Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?”. Os candidatos a presidente e aos governos, durante essas eleições, precisarão refletir sobre essa pergunta que continua no ar, sem resposta.

*Pesquisadores e autores do livro A guerra – ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil

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