Um maître a serviço datradição

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Por Vitor Hugo Brandalise
Atualização:

Quando se trata de tradição, cada detalhe é importante. "Olha, já vou avisando que a galinha caipira está com a carne mais escura. É que trocamos de fornecedor", desculpa-se, da porta da cozinha, o chef Eric Berland, do Restaurante Parigi, no Itaim-Bibi, zona sul de São Paulo. Com as mãos espalmadas, ele continua: "E também acabou a raiz forte. Neste mês, vamos comprar de outra pessoa. Mas, calma, é só neste mês..." Ele se dirige a um senhor baixinho, de ar simpático, mas que balança a cabeça negativamente a cada palavra que ouve. É Ático Alves de Souza, de 82 anos, "maître especial" do restaurante, contratado exatamente para evitar mudanças - em outras palavras, Ático está ali para ajudar a manter a tradição. "Vamos dar um jeito nisso, Eric...", ele encerra a conversa, voltando ao salão do restaurante. "O chef sempre consegue", confidenciou depois, tranquilo, o maître da tradição. No Parigi, um dos sete restaurantes do Grupo Fasano, a maneira encontrada para homenagear o passado foi conservar no cardápio o Bollito - cozido italiano de carnes e legumes, servido com pirão de farinha de rosca -, prato simples, mas campeão de pedidos nos dois dias em que é servido na casa (quartas e domingos, cerca de 40 pratos ao dia). Manter o Bollito original, no restaurante, é a atribuição principal do maître Ático. "É simples, mas foi o prato preferido de, pelo menos, dez presidentes da República", ele lembra, com a autoridade de quem trabalhou, por 37 anos, num dos mais tradicionais restaurantes da elite paulistana, o Ca?d?Oro. "Como homenagem a todos os clientes, cuido para mantê-lo original." Para quem conhece Ático, o cuidado com o cozido - os cortes das carnes sempre idênticos, a ordem de colocação dos ingredientes no prato também - representa a síntese de uma carreira em restaurantes que já dura 60 anos, desde 1949. "Ele sempre foi cuidadoso, mede gestos e palavras, é a definição de um bom maître", diz o gerente do hotel e restaurante Ca?d?Oro, Aurelio Guzzoni - filho de Fabrizio Guzzoni, fundador do restaurante e considerado por Ático seu maior guru. "Hoje, dez entre dez profissionais das casas tradicionais sabem quem é esse senhor de nome diferente. Uma lenda viva." As palavras de Ático, pouco antes de iniciar o trabalho num dos "dias de cortar o cozido", mostram que, realmente, não se trata de profissional comum - são exemplo de que, entre as mesas e cadeiras dos salões dos restaurantes, há espaço para belos gestos de respeito. "Do garçom ao gerente, todo o trabalho se resume a um pedido: o pedido do cliente", ele diz, de olho na porta de entrada. Logo avisa: "Se um cliente entrar, interrompemos a entrevista." Tanto zelo retrata a formação que teve: nos anos em que trabalhou no Ca?d?Oro (13 como garçom, 24 como maître executivo), ouviu de Fabrizio Guzzoni máximas como "não se pede elogio ao cliente" e "não queira ensinar ao cliente". "É possível encontrar gente assim hoje? Aprendi tudo com ele. A clientela em primeiríssimo lugar." Pois a clientela, ao menos uma vez, conseguiu agradecer. Foi em 1987, quando, com a assinatura de 50 clientes do Ca?d?Oro, Ático foi nomeado cavaleiro da Ordem do Mérito do Trabalho, pelas mãos de Almir Paz-zianotto, ministro do Trabalho do governo José Sarney. "Distinção marcante no exercício da profissão" e "prestação de notáveis serviços ao País" são atribuições necessárias para a concessão da Ordem. Tímido, ele desconversa: "Nada... É que o ministro também era cliente." RETIRANTE Nascido em Monte Santo, na Bahia, Ático - "nome tirado de livro de nomes mesmo; estava no dia 10 de dezembro e foi o que ficou" - mudou-se para São Paulo em 1949, aos 23 anos. Retirante clássico, chegou procurando emprego na construção civil - como servente de pedreiro durou apenas um mês. "Tinha vaga num restaurante novo, na República. Assim que soube, corri para lá." Na cantina Cambusa, começou como faxineiro. "O barman faltava muito, então jogavam um paletó e eu ficava atrás do balcão, sem saber nada. Saltei muito drinque no susto para Getúlio Vargas, Teixeira Lott... Mas só entrei no salão quando me deram a chance, no Ca?d?Oro recém-fundado." Era 1953. Nos salões do restaurante, primeiro na Rua Barão de Itapetininga, depois na Basílio da Gama e, por fim, na Rua Augusta, Ático ficou até 1990 - tornou-se símbolo do restaurante, onde até hoje é reconhecido. "Vem gente do interior e, quase 20 anos depois, ainda pergunta: ?Cadê o seu Ático??", conta Aurelio Guzzoni. "Ele é parte da história do hotel." Quando deixou o Ca?d?Oro, o maître pensou em se aposentar. "Comprei uma chácara em Biritiba-Mirim e me acostumei a ficar parado. Até o Rogério (Fasano) me ligar, querendo meu Bollito no restaurante. Combinamos os dias da semana e aqui estou, cuidando para que siga como antes." Nos últimos tempos, no Parigi, Ático anda tomando cuidado extra: elegeu um discípulo, para quando se aposentar (ainda sem perspectivas). É o garçom Francisco de Assis, o Chiquinho, de 49 anos, que está aprendendo a colocar o cotechino no prato primeiro, depois o zampone... "Sigo com seriedade para conseguir corresponder", diz Chiquinho, bem ensaiado. "Porque ele pega no pé, viu? Não sei se é mais no meu, ou no do chef..." Observando o trabalho do discípulo, encostado no carrinho prateado que carrega as carnes, os legumes, os molhos, Ático confidencia: "Lembra um pouco de mim, no começo."

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