Um mês após tiroteio em escola, adolescente tenta retomar a vida

Paraplégica, adolescente que levou três tiros comemora os pequenos progressos

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Por André Borges
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7 min de leitura
Colégio Goyases, em Goiânia, local do atentado que matou duas crianças e feriu outras quatro Foto: André Borges/Estadão

"Papai, papai! Ele vai entrar aqui! Eles vão me pegar, papai! Estou com medo, estou com muito medo!". Ao ouvir os gritos e o choro da filha Isadora, Carlos Alberto Morais pulou da cadeira em que estava e abraçou a filha deitada na maca. A menina estava em pânico. Carlos sussurrou algumas palavras em seu ouvido para tranquiliza-la. Aos poucos, o desespero cedeu. Restou um choro baixo, até que a pequena Isadora, prostrada, dormiu novamente.

Tem sido assim nos últimos dias, desde que Isadora de Morais, de 14 anos, deu entrada no Centro de Reabilitação e Readaptação Doutor Henrique Santillo (Crer), em Goiânia. Com o uso de remédios e a presença constante de médicos, psicólogos e familiares, a adolescente tem conseguido dormir algumas horas por noite, mas hora e outra é revisitada por pesadelos.

As imagens e pensamentos que atormentam Isadora brotam da tragédia que, um mês atrás, chocou todo o País. Na manhã de sexta-feira, 20 de outubro, um adolescente de 14 anos entrou na sala do 8º ano do Colégio Goyases, no Conjunto Riviera, bairro de classe média de Goiânia, abriu a mochila, sacou uma pistola calibre 40 e disparou contra seus amigos. Os adolescentes João Pedro Calembo e João Vitor Gomes, ambos de 13 anos, não resistiram e morreram no local. Outros três alunos, Yago Marques e Marcela Rocha Macedo, de 13 anos, e Lara Fleury Borges, 14 anos, também foram atingidos pelos disparos, mas escaparam com vida e já estão em casa. Isadora de Morais é a quarta sobrevivente, mas sua batalha está só começando. Isadora ficou paraplégica.

Dia comum

A manhã daquela sexta-feira havia começado como qualquer outra para a família Morais. Na discreta casa da rua 10, cuja fachada foi tomada por cachos amarelos de um pé de acácia, a popular "chuva de ouro", Carlos Alberto tomou café com os filhos e, às 07h00, foi com Isadora até o portão da escola. A rua onde moram termina justamente na porta de entrada do Colégio Goyases. São cerca de 50 metros entre a casa de Isadora e sua sala de aula. 

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Às 11h30, quando estava no trabalho, Carlos recebeu a ligação da esposa Isabel Morais. A mãe, desesperada, tinha recebido a informação de que um "tiroteio" havia ocorrido na escola e que Isadora estaria "na lista" dos atingidos. Por meio de uma mensagem enviada por um grupo de amigos no Whatsapp, o irmão de Isadora, Vinícius de Moraes, de 17 anos, também recebia a notícia, durante uma aula de história, em outro colégio. A família seguiu em desespero até a escola da filha. No caminho, em desespero, a mãe se feriu e torceu o pé. Quando a família chegou ao Colégio Goyases, a rua já estava tomada por carros da imprensa, ambulâncias do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), do Corpo de Bombeiros e do Instituto Médico Legal (IML).  Isadora estava entre as vítimas, mas viva. Sob a mira do atirador, tinha recebido um tiro na mão, outro no pescoço e um no tórax. Este último atingiu sua medula espinhal, entre a 9ª e a 10ª vértebra da coluna torácica. Dali, Isadora foi socorrida até a unidade de terapia intensiva (UTI) do Hospital de Urgências de Goiânia (Hugo), onde foi sedada, entubada e passou por cirurgias. Os riscos de paraplegia, que foram informados horas depois à família, logo se confirmariam. 

Esperança

Depois de 20 dias de internação, Isadora deixou a UTI e seguiu para o Centro de Reabilitação e Readaptação (CRER), para iniciar uma nova fase de tratamento, na esperança de retomar seus movimentos. Do umbigo até a ponta dos pés, Isadora não tem mais nenhuma sensibilidade ou movimento. O funcionamento da bexiga também foi totalmente comprometido.

"Logo ela vai andar. A gente crê nisso e ela também, mas ainda vai um processo longo, com várias equipes", diz o pai Carlos Alberto. "É no tempo de Deus, não é no tempo do homem. Muitas vezes a gente é até ingrato, porque pede uma coisa para ser atendido hoje. Mas com certeza o tempo de Deus é maior que o nosso. Se for propósito Dele que ela saia amanhã da cama, será assim. E eu creio. Eu acredito."

A menina que hoje alimenta a fé de voltar a andar é conhecida como "Risadora" pela família, apelido tirado de seu senso de humor e da risada que arranca sorriso de quem estiver envolta. Comunicativa e boa aluna, Isadora já havia sido aprovada durante o terceiro bimestre do 8º ano do Colégio Goyases, onde estuda desde a primeira série, como seu irmão Vinicius de Morais, de 17 anos, batizado pelos pais com uma homenagem ao poeta da bossa nova.

Vinicius, que tem estudado o dia inteiro para prestar o vestibular para Medicina, está em casa cuidando daquilo que Isadora sente mais saudades: Tonico, um cãozinho de seis meses da raça shih-tzu, que ganhou da tia. "A gente já tinha falado que agora falta o Tinoco, para que dupla caipira fique pronta", conta o irmão.

A inspiração sertaneja vem de Isadora, que é fã de nomes mais modernos como Henrique e Juliano, Jorge e Mateus e Marília Mendonça. "Ela adora esse sertanejo universitário, mas eu gosto mais de tropicália, de MPB. A gente fica se provocando", diz Vinícius.

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Tratamento

Limitada às dependências do centro de reabilitação, onde chegou no último dia 10, Isadora ainda deverá ficar um bom tempo sem ver Tonico. Dentro do plano terapêutico desenhado para a adolescente, os próximos 30 dias serão decisivos para demonstrar como, efetivamente, será a sua vida daqui para frente.  "Esse projeto visa restabelecer aquilo que é possível dentro do quadro do paciente, e nós só teremos a possibilidade de dizer o que ela vai ganhar pu perder ao longo desse período, após a avaliação ao longo desses dias", diz Válney Luís da Rocha, diretor-geral do CRER, um hospital público com estrutura e padrões muito acima da média do que se costuma ver em qualquer região do País. "Já sabemos que é uma lesão grave e que tem consequências sérias, mas eu não posso afirmar, nesse momento, qual é exatamente a intensidade disso. Dizer a você que ela não vai mais se locomover seria prematuro de minha parte, assim como seria irresponsável dizer que ela vai voltar a andar. É preciso ter muita cautela."

A bala que atingiu a medula ainda está alojada dentro da estrutura da coluna vertebral de Isadora. O trauma desenvolve um edema que interrompe o estimulo cerebral, causando a paralisia. Com o passar do tempo, esse cenário pode melhorar ou piorar. A equipe que hoje cuida da adolescente é formada por seis profissionais, entre médicos ortopedista, fisiatra, fisioterapeuta, terapeuta ocupacional, psicólogo, e nutricionista, além do corpo de enfermeiros. 

Depois de quatro dias no centro de reabilitação, Isadora venceu o primeiro desafio de conseguir se sentar, o que lhe permitiu tomar um banho de chuveiro. "Foi uma alegria para ela, uma conquista. Só de sair da cama e poder tomar banho no chuveiro, depois de mais de 20 dias, foi um alívio grande. Ela tem ficado esperando o dia clarear para poder tomar banho de novo", diz o pai Carlos Aberto.

Para lidar com a perda de controle da bexiga, Isadora está passando por processo de "reeducação vesical", no qual a bexiga passa a ter um controle próprio, independentemente da função cerebral. Uma sonda usada em intervalos de tempo predeterminados acaba "ensinando" a bexiga a ter uma "memória"própria, entendendo que, naquele intervalo, se esvazia. Assim, a pessoa cria o hábito de ir ao banheiro naquele determinado horário.

Futuro

O otimismo e o sentimento de confiança que cercam Isadora, reconhecem os médicos, são peças fundamentais no processo de recuperação da garota. "Nós sabemos que todos os pacientes que estão imbuídos de um sentimento de otimismo, de esperança, são mais colaborativos, participam do processo de reabilitação e respondem de uma maneira melhor", diz Válney. " Enquanto instituição, estamos fazendo o que nos compete do ponto de vista de assistência, e precisamos contar com a participação, não só dos familiares, como daqueles que estão trabalhando no caso dela, que expressem sentimentos positivos, que melhorem sua autoestima e auxiliem em sua recuperação."

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Passado o prazo de mais 30 dias internação, Isadora deve ir para casa e, a partir daí, iniciar uma nova etapa de reabilitação e readaptação para sua nova realidade de vida, processo que deve durar mais um ano.

Nesta semana, há previsão de que a adolescente começa a sair um pouco do quarto, para passear pelos corredores do hospital em uma cadeira de rodas. Seu irmão, Vinícius, comemora. "Tenho certeza de que vai sair dessa mais forte, vai conseguir lidar com essa situação. Não tenho dúvida disso. Ela tem uma alegria incrível de viver."

PARA LEMBRAR

No dia 20 de outubro, um estudante de 14 anos do Colégio Goyases, em Goiânia, sacou uma arma no intervalo entre as aulas e atirou contra seus colegas em uma sala do 8.º ano. Os adolescentes João Pedro Calembo e João Vitor Gomes, ambos de 13 anos, morreram no local. Outros quatro alunos – Yago Marques e Marcela Macedo, de 13 anos, Lara Borges, de 14, e Isadora de Morais, de 14 – também foram atingidos, mas escaparam com vida. Filho de policiais militares, o atirador foi detido e encaminhado para uma unidade de internação para adolescentes infratores, onde aguarda julgamento isolado dos demais.

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