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Uma semana com R$ 500

Estado testa roteiro em praias isoladas de Paraty, onde o divertido é gastar pouco

Por Eduardo Nunomura
Atualização:

Tenho R$ 500, uma semana para viajar com esse dinheiro e 7.878 caracteres para descrever a experiência. Só uma regra a ser respeitada: sem caronas ou campings. Com a gasolina nas alturas, apesar da queda do preço do petróleo, ir de carro sai caro. Na internet, nada de avião com promoção de última hora. No Terminal Rodoviário do Tietê, os guichês convidam a destinos imaginativos, ao menos no nome: Carangola, Piripiri, Quipapá, Formosa do Rio Preto. "Moça, quanto custa uma passagem ida e volta para Salvador? R$ 497?!" Com os R$ 3 restantes não daria nem para pisar no Pelourinho. "Senhor, com menos de R$ 100 dá para ir aonde? Paraty?" A imensa maioria dos brasileiros viaja de ônibus. Ver um reluzente coletivo chegar no horário e partir cinco minutos atrasado é uma maravilha. A poltrona reclinável mataria de inveja os pobres passageiros aéreos. E eles, após horas na fila do check-in, voam no aperto, mas chegam antes. Levo seis horas até o litoral sul do Rio. Paraty é uma cidade cartão-postal. O município preservou o belo estilo arquitetônico no centro histórico por ter ficado isolado depois do declínio de sua economia no século 19. As ruas de pedras obrigam a frear o passo. Sobra tempo para apreciar as casas. Sobretudo para diferenciar as de telhados com eira e beira, que marcam a moradia dos ricos do Brasil colônia. As habitações dos mais pobres, dizem os historiadores, "não tinham nem eira, nem beira". Esse será o meu padrão. O americano Ross Joseph John Todd é dono da Bed & Breakfast Paraty. Guias estrangeiros recomendam a pousada. Com 10 anos no País, ele reconhece e respeita o bom negociador. "Faço por R$ 30, mas o quarto é improvisado." A outra opção seria um hostel pelo mesmo valor, porém com triliche. Quem consegue dormir beijando o teto? A primeira noite está decidida. No verão da crise, o café da manhã vale ouro. Como já está pago, devore como se fosse um almoço. Com discrição. O americano Alan Webber, de 28 anos, e a etíope Genet Tito, de 26, que vivem em Nova York, são da mesma tribo do comensal de desjejum. Ele é cineasta e sua namorada veio lhe ver, já que Webber passará um ano com US$ 20 mil viajando pelo mundo. Um nômade com US$ 55 por dia? Uma vez e meia mais do que tenho nesta semana? Talvez me pague um almoço se lhe der umas dicas. Webber e Genet queriam ir a uma cachoeira. E eu pensei em conhecer um alambique. O Sebrae reconhece só quatro "Indicações Geográficas", onde um certo produto tem a cara do lugar. No cerrado, é o café. No Vale dos Vinhedos, o vinho. No pampa gaúcho, a carne. Paraty é a terra das cachaças. Fomos de ônibus pela serra que vai na direção de Cunha (SP). A Cachoeira do Tobogã e o alambique Engenho D?Ouro ficam colados. Dica preciosa: prove um pouco de aguardente - só um gole! - e entre na gélida água da mata atlântica. Ainda não há lei seca para descer corredeiras. PARAÍSO DISTANTE Mas meu destino final era o Pouso da Cajaíba. Ela não é uma ilha, mas só se chega lá pelo mar ou por trilhas que levam dias. No cais principal de Paraty, pergunte a um barqueiro para turistas quanto ele cobra para levar até Cajaíba e ele dirá, sorrindo, R$ 300. Você ri e vai embora. Aproveite e fotografe a Igreja de Santa Rita, uma imagem clássica. No dia seguinte, um achado, a Pousada Brisamar. Com mais conforto, cobrará no verão R$ 40 para grupos de até dez pessoas. Ela fica a poucos metros do futuro terminal pesqueiro. Pescadores vendem ali seus peixes, depois de se abastecerem com gelo e voltam para o destino que quero ir. Valmor dos Santos de Almeida tem 28 anos e pesca desde criança. Ele mora na Praia de Itanema - que os moradores preferem chamá-la de Ipanema. Se os 200 quilos de pescado que vendeu fossem só sororocas (R$ 6 o quilo) e lulas (R$ 7), estaria rico e me deixaria a ver navios. Como apanhou mais peixes-voadores (R$ 0,10) e sardinhas (R$ 2), a venda lhe garantiu R$ 200 por cinco dias de trabalho. Por isso, ficou feliz com os R$ 25 que lhe ofereci para me transportar por duas horas e meia até Cajaíba. "Meu sonho é comprar uma escuna para viver de passear com turistas." Existe um momento, além da arrebentação no mar aberto do Atlântico, em que a monotonia do verde das águas e montanhas ganha pinceladas amareladas no horizonte. É o Pouso da Cajaíba e suas praias vizinhas. A 24 quilômetros de Paraty, ela é uma pequena vila de pescadores, localizada entre o município e Ubatuba, distante da estrada e desprovida de modernidade. Não há luz elétrica. A energia solar chegou parcialmente há quatro anos. Tem bares e restaurantes simples, escolas, postos de saúde e uma igrejinha. No verão, os turistas pagam R$ 3 mil pelo aluguel de dez dias de uma casa dos nativos e estes vão morar num puxadinho de R$ 400 na periferia de Paraty. Em Cajaíba, há mais campings que pousadas, que são poucas, porém honestas como a da Vanda. Ela cobra R$ 25 por cabeça, com direito a banho de água da montanha aquecida a gás. A melhor chuveirada da viagem. Já os pescadores guardam a rede, o caçuá, a linha e o anzol e vão viver de transportar turistas. Alguns lugares possuem geradores movidos a diesel. São barulhentos, mas produzem energia suficiente para ver TV - convide-se para assistir com eles. As geladeiras são a gás. As placas de energia solar só servem para iluminar os quartos. Quem vai ao Pouso da Cajaíba tem as Praias de Itanema, da Toca, Calhau, Itaoca, Grande e Deserta no lado esquerdo e as de Ponta de Juatinga e Martim de Sá no fundo. São 3,3 quilômetros de areia. Com dinheiro, dá para conhecê-las de barco. A pé, elas saem de graça e os cenários são de tirar o fôlego já esgotado no sobe-e-desce das trilhas. Numa direção e noutra, são cerca de quatro quilômetros. Só de ida. Praias paradisíacas, matas, cachoeiras e rios compensam. Curioso que em cada lugarzinho remoto há um nativo numa barraca ou com um isopor pronto para aplacar sua fome e sede. Refeição, só o almoço-janta: arroz, feijão, peixe frito ou ensopado a R$ 10. Esse conjunto único de praias fica na Reserva Ecológica de Juatinga, criada em 1991. Não deveria haver moradores numa unidade de conservação, mas há - desde os portugueses que chegaram no século 16. À sua forma, os atuais caiçaras inventaram o negócio do turismo. Ganham pouco no verão e se desenvolvem menos ainda. VIDAS NA PENUMBRA A principal trilha para chegar até a Praia de Martim de Sá acaba na entrada do camping do pescador Manoel dos Remédios, de 67 anos. Um ex-coronel do Exército e sua família já tentaram, em vão, desapropriá-lo. Ele resistiu e assumiu a missão de preservar o local - acampar na praia é proibido. Já abriu centenas de trilhas de mateiro e algumas para turistas, como a do Mirante do Miranda, de onde se vê toda a baía de Paraty. Numa outra, encontro a paz: uma corredeira que deságua no mar. Depois de três dias em Cajaíba, tendo jogado futebol com os caiçaras, visto de perto a beleza de uma pescaria e caminhado muito, devo voltar. Os barqueiros dão a dica de que professoras partirão no dia seguinte. Na Ponta da Juatinga, Pouso da Cajaíba e Calhau, só há três escolas do ensino fundamental. As crianças de Cajaíba não podem estudar mais do que o primeiro ciclo. Embarco com a educadora Edna Regina de Oliveira, que desabafa: "É muito triste terminar o ano e ver que muitas crianças vão parar de estudar." No retorno, uma surpresa: botos festejam a passagem do barco. E Edna descobre uma festa de fim de ano para professores na Ilha Rasa. Somos convidados para um churrasco. À tarde, já em Paraty, é hora de fazer o balanço. Sobrou grana. Depois de uma semana vivendo no miserê, mereço banquetear. Nas ruas de pedras, procuro um jantar à altura de um bon vivant. Escolho o restaurante Casa do Fogo e, com fineza, peço um camarão flambado na cachaça. Andrés e Marilde tocam belas canções, que me levam a outra viagem. A penúltima antes do ônibus que me traz à vida dura de escrever este texto.

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