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Com 434 mortes, letalidade policial no Rio no 1º trimestre de 2019 é a maior em 21 anos

Especialistas mostram preocupação com alta e a associam com intervenção federal e políticas do governador Wilson Witzel. Mãe revive trauma da morte do filho durante operação na Maré

Foto do author Marcio Dolzan
Por Fabio Grellet e Marcio Dolzan
Atualização:

RIO - As Polícias Militar e Civil do Rio mataram 434 pessoas de janeiro a março deste ano, segundo o Instituto de Segurança Pública (ISP-RJ). Foram quase cinco (4,82) mortos por dia, recorde para o período na série estatística de 21 anos, iniciada em 1998. As mortes continuam no trimestre em curso.

Só em quatro dias de maio, da sexta-feira, dia 3, à segunda-feira, dia 6, pelo menos 13 pessoas morreram por ação policial: quatro no morro do Borel (zona norte), uma na Rocinha (zona sul) e oito nas favelas do Complexo da Maré (zona norte). 

Moradores da Maré denunciaram que a operação na comunidade, auge da ofensiva policial nos primeiros dias de maio, incluiu disparos feitos a partir do helicóptero que sobrevoou o complexo Foto: FABIO MOTTA/ESTADãO

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Especialistas mostram preocupação com a escalada de mortes. Ela começou, dizem, em 2018, durante a intervenção federal na segurança, e cresceu no governo Wilson Witzel (PSC), cuja política de segurança é de confronto com os suspeitos.

“Nós já vínhamos numa crescente, especialmente no ano passado, a partir da intervenção federal chefiada pelos militares”, disse o sociólogo Ignacio Cano, coordenador do Laboratório de Análises da Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (LAV/UERJ). “Agora, com a nova política de extermínio oficializada pelo governo Witzel, o que caberia esperar era justamente isso. O contrário seria uma grande surpresa.” O aumento foi de 18% sobre o primeiro trimestre de 2018, quando houve 368 mortos em supostos confrontos.

Moradores da Maré denunciaram que a operação na comunidade, auge da ofensiva policial nos primeiros dias de maio, incluiu disparos feitos a partir do helicóptero que sobrevoou o complexo. Imagens de estudantes uniformizados correndo pelas ruas das favelas para se proteger dos tiros circularam nas redes sociais. Houve também reclamações contra tiros feitos a partir da aeronave que atingiram telhados de casas na região.

A política de confronto também vitima os policiais. Em 2019, até 9 de maio, segundo a Polícia Militar, 18 policiais da corporação haviam sido mortos - 3 em serviço, 11 de folga e 4 reformados. 

Dois dias antes da ação na Maré, Witzel postou vídeos no Twitter, expondo na prática sua política de confronto. Apresentou imagens da sua participação em uma operação policial em Angra dos Reis, no sul do Estado. Há meses, o tráfico de drogas na cidade da Costa Verde fluminense é disputado por criminosos de facções rivais. A ação policial não teve resultados significativos. 

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Com policiais armados da Coordenadoria de Operações Especiais (Core) da Polícia Civil - mesma unidade que agiu na Maré -, ostentando fuzis e com um helicóptero ao fundo, Witzel anunciou que ia “botar fim na bandidagem”. “Acabou a bagunça”, bradou. Depois, contou estar “sobrevoando uma das áreas mais perigosas” do município.

Para a antropóloga e cientista política Jacqueline Muniz o envolvimento de Witzel em ações policiais é ilegal. “Ele dispõe de poder político-administrativo, não de poder de polícia. Ele tem de determinar a política de segurança, as estratégias, as prioridades. Toda brincadeira que ele faz como policial esbarra na ilegalidade e no abuso de poder.”

Policiais do Estado de São Paulo mataram 213 pessoas suspeitas em operações no primeiro trimestre deste ano. A quantidade representa uma alta de 8% em relação ao mesmo período do ano passado.

Governo diz que protocolo determina apuração em caso de morte

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Em nota, o governo do Rio afirmou que “sua política de segurança é baseada em inteligência, investigação e aparelhamento das polícias Civil e Militar”. 

“O Comando de Operações Especiais (COE) da Polícia Militar trabalha com atiradores de elite há vários anos. Os efetivos do COE são constantemente treinados. Todas as operações da Polícia Militar, com a participação de atiradores de alta precisão ou não, são precedidas de planejamento técnico e seguem protocolos previstos em lei. Num desses protocolos está a exigência de instaurar procedimento apuratório imediato quando as ações resultam em ferimentos ou mortes. Nas ações em áreas conflagradas, a missão da Polícia Militar é primordialmente a prisão de criminosos e apreensão de arma e drogas”, diz a nota.

“O Estado está valorizando seus policiais: aumentou o valor do Regime Adicional de Serviço e vem investindo em equipamentos policiais como coletes, viaturas e armamentos. Três mil PMs serão convocados até o fim do ano. Na Polícia Civil, 391 novos agentes foram convocados para fortalecer o quadro. O governo ampliou o Departamento de Combate à Corrupção, ao Crime Organizado e Lavagem de Dinheiro, que aumentou o número de investigações em mais de 700% neste ano, se comparado ao mesmo período de 2018”, segue a nota. 

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“Dados do ISP demonstram os resultados desse esforço na política de segurança pública. Desde o início do ano, os números de homicídios dolosos e a letalidade violenta caíram pelo terceiro mês consecutivo, na comparação com o mesmo período do ano passado. O Rio de Janeiro também bateu recorde em apreensão de armamentos”, conclui a mensagem.

Após perder filho, mãe revive trauma na Maré e tenta proteger filha

Quando ouviu gritos e tiros ao redor de casa, no complexo de favelas da Maré (zona norte do Rio), por volta das 11 horas da segunda-feira, 6 de maio, a diarista Bruna da Silva, de 37 anos, reviveu o pesadelo vivenciado em 20 de junho do ano passado. Naquele dia, seu filho Marcos Vinícius da Silva, de 14 anos, tentava ir para a escola, quando foi baleado durante uma operação policial e morreu

Operação policial realizada neste mês no Complexo da Maré, que terminou com oito mortos, fez a diarista Bruna reviver o trauma da morte do filho Foto: WILTON JUNIOR / ESTADÃO

“Naquele dia havia três helicópteros da polícia sobrevoando a favela. Um deles começou a atirar de cima, e meu filho se escondeu. Quando os tiros pararam, ele retomou o caminho para a escola, acabou cruzando com um caveirão (veículo blindado da polícia), e os policiais atiraram”, narra Bruna. Além do filho dela, outras cinco pessoas foram mortas.

Na segunda-feira, era a outra filha, de 13 anos, que estava na escola quando os tiros começaram. “Eu subi na laje para recolher uma blusa de escola da minha filha e vi o helicóptero da Polícia”, conta. “O abuso é o mesmo, eles atiram para depois perguntar quem é. Não importa mais quem é, eles estão aqui para matar. Foi tudo igual, mas eu não posso deixar o Estado devolver minha filha como devolveu meu filho.”

Bruna contou os momentos de aflição que viveu, com medo de que a perda de quase um ano atrás se repetisse. “Você quer chegar na sua filha, mas não pode sair (de casa) no meio dos tiros”, diz, explicando que a menina não estava entre as crianças fotografadas correndo em pânico. “Falei com o diretor da escola dela, e ele garantiu que não iria liberar as crianças, aí fiquei mais aliviada. Mas outros alunos tinham sido liberados pouco antes, quando ainda não havia operação. Aí o helicóptero chegou dando tiros, e as crianças já estavam na rua. Não tinha mais como recolhê-las, então elas ficaram à mercê dos tiros.”

A Defensoria Pública, que esteve na favela, contabilizou 22 marcas de tiros que teriam sido disparados a partir do helicóptero. A operação, promovida pelo grupo de elite da Polícia Civil, terminou com três detidos e oito mortos.

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Em 2018, um dia após a morte de Marcos Vinícius, a Defensoria Pública ajuizou ação civil pública, pedindo que a polícia fosse proibida de atirar a partir de helicópteros, mas a liminar foi negada.

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