Confiscadas pela polícia no passado, peças de religiões de matriz afro vão para museu no Rio

Acervo tem 523 itens retirados dos donos quando religiões de matriz africana eram criminalizadas; transferência reacende debate sobre repatriação da memória negra

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Por Priscila Mengue
Atualização:
Museólogo observa peças da coleção Magia Negra,no Museu da República, no Rio de Janeiro Foto: Wilton Junior/Estadão

A transferência de 523 peças de religiões de matriz africana para o Museu da República, no Rio, no fim de setembro, reacendeu o debate sobre a descriminalização e a repatriação da memória negra do Brasil. Imagens, instrumentos e indumentárias foram retirados dos donos coercitivamente até os anos 40, e grande parte continua longe de suas origens. O acervo estava em caixas, em condições precárias e em meio a itens de antigas investigações policiais. 

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O caso mais recente é fruto de décadas de reivindicação, que ganhou força nos últimos anos com o nome de Liberte Nosso Sagrado. A coleção reúne os 126 itens restantes (parte foi perdida em um incêndio) do originalmente chamado acervo de Magia Negra, primeiro bem inscrito no livro de tombo arqueológico, etnográfico e paisagístico do Iphan, em 1938, que depois recebeu outros itens. Em comum, todos foram confiscados pela polícia de 1889 a 1945, quando a prática de candomblé e umbanda era crime.

Uma das mais importantes lideranças no candomblé carioca, a ialorixá Mãe Meninazinha d’Oxum, de 83 anos, costumava ouvir da avó (também mãe de santo) a necessidade de reaver as peças sequestradas por agentes públicos e, depois, armazenadas no Museu da Polícia. “Pegaram o que era nosso sagrado e levaram para a polícia, como prova de um crime que não cometemos. Era chamado de crime porque era religião de negro”, lamenta. 

Para ela, que relata alívio com descriminalização do acervo, a futura exposição das peças é positiva. “Seria ótimo que as pessoas fossem para conhecer, ver o que passamos. Tudo isso foi fruto do racismo religioso”, diz.

Peças foram apreendidas por policiais entre o fim do século 19 e as primeiras décadas do século 20 Foto: Wilton Junior/Estadão

Um dos diretores do documentário Nosso Sagrado, que narra essa trajetória, o historiador Jorge Santana lembra que o movimento também constatou que as peças estavam acondicionadas de modo inadequado, em caixas de papelão, sem as condições necessárias de preservação e, ainda, com a presença de traças. 

Também integrante do Liberte Nosso Sagrado, que reúne lideranças religiosas, movimento negro e apoiadores de diferentes grupos sociais e instituições, Santana conta que o movimento se inspirou em um caso semelhante de Salvador para entrar com representação no Ministério Público Federal (MPF) em 2017, que depois virou inquérito.

A reivindicação focou em dois pontos: o acondicionamento inadequado e a reparação histórica. Ele lembra que, embora em parte tombado, o acervo sofre com falta de informações de origem. Os poucos dados sobre sua história vieram majoritariamente de pesquisas em antigos textos jornalísticos. 

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Como ele reforça, esse tipo de intolerância e violência religiosa ainda permanece no País, com casos de invasão e depredação de terreiros, especialmente por criminosos que se declaram cristãos neopentecostais.

As peças estão em fase de higienização e documentação fotográfica após terem passado por quarentena, explica Mario Chagas, diretor do Museu da República. Ainda são previstos trabalhos de conservação e de restauro, pois parte das imagens está quebrada e com danos graves, além de pesquisas, que devem continuar pelos próximos anos.

A ideia é que parte das peças esteja em exposição até novembro de 2021, com uma disposição que será discutida por um grupo de trabalho formado em conjunto com representantes do povo de santo. “Várias narrativas são possíveis, podemos tratar desse acervo na perspectiva histórica, na perspectiva estética, antropológica, tem a dimensão educacional”, diz.

Parte dos objetos são de um acervo tombado pelo Iphan em 1938 Foto: Wilton Junior/Estadão

“Não pretendemos fazer uma única exposição definitiva. Nossa ideia é ir trabalhando gradualmente, com múltiplas narrativas, mas sempre mantendo alguma coisa exposta”, explica Chagas. Ele destaca que serão expostas apenas as peças que tiveram anuências das lideranças religiosas. Um livro também está nos planos do museu. 

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O diretor explica que os itens são diversos, de materiais como palha, madeira, metais, tecidos e louças, como imagens de entidades e santos, coroas, espadas, figas, colares de miçangas, cachimbos, escudos, machados, peças de indumentária e instrumentos variados. 

“A libertação desse sagrado não interessa só aos praticantes das religiões de matriz africana, interessa aos budistas, católicos, evangélicos, judeus, ateus, interessa a todos que tenham a consciência da importância da liberdade de manifestação religiosa e da liberdade de expressão.”

Chagas ainda destaca o simbolismo de as peças serem expostas no Palácio do Catete, hoje espaço museológico, mas antes sede do Executivo federal no período em que as religiões afro eram criminalizadas. “Tem um conteúdo político muito forte. Não é impossível pensar que muitas ordens (envolvendo a criminalização dessas religiões) que, mesmo que não nasceram por ali, passaram por ali ou tiveram o conhecimento aval de quem estava ali.”

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Fotógrafo cataloga peças da coleção Magia Negra no Museu da República, no Rio de Janeiro Foto: Wilton Junior/Estadão

Salvador teve também teve caso de repatriação de acervo

Situação semelhante ocorreu há cerca de 10 anos em Salvador, com a transferência de peças que eram do antigo Museu Nina Rodrigues para o Museu Afro-Brasileiro (Mafro) após reivindicação pública feita ao menos desde a década de 1970. Em grande parte oriundas de apreensões, elas foram originalmente reunidas por um médico eugenista há mais de 100 anos, que relacionava as religiões de matriz africana com distúrbios mentais. 

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“Foram médicos como o Nina Rodrigues que forjaram o racismo no Brasil”, conta Marcelo Cunha, diretor do Mafro, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e curador da coleção. “Essas peças acabavam compondo um texto semântico em que o candomblé e a cultura afro apareciam na perspectiva da doença, um contexto que é muito grave.”

Como o caso carioca, esse também enfrentou dificuldades para obter informações e teve os jornais como principais fontes, mas se sabe que uma parte tem origem africana. Por isso, foram e são tema de pesquisas.

“A questão é, sobretudo, mais do que denunciar o absurdo da nossa história, chamar a atenção que ele continua acontecendo. O racismo sistemático religioso é um dos braços do racismo estrutural.”

Acervo hoje no Museu da República reúne itens diversos, como figas, cachimbos e terços Foto: Wilton Junior/Estadão

Exemplo de repatriação distinta foi feita para o acervo Afro-Pernambucano, que está no Centro Cultural São Paulo, na capital paulista. Ela ocorreu de forma virtual em 2017, em parceria com o Museu Afrodigital e o Museu da Abolição, do Recife, cidade de origem das peças, confiscadas pela polícia na década de 30 e cedidas à missão de pesquisas folclóricas Mário de Andrade.

Outro caso é o da cadeira de mando de Jubiabá, apreendida pela polícia da capital baiana nos anos 20 e devolvida somente 95 anos depois ao terreiro de origem, após ficar anos exposta em um instituto. Esse é um exemplo raro por envolver um item cuja origem era conhecida, até por trazer uma inscrição de um líder religioso conhecido, que a utilizava durante celebrações. 

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Há, também, coleções com trajetória semelhantes aos casos carioca e soteropolitano (provindas de apreensão policial) em outras instituições brasileiras, como o Museu Arthur Ramos (que descreve ter itens "de feitiçaria" em seu site oficial), em Fortaleza, o Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas (recolhidas no chamado “Dia do Quebra”, em 1912), em Maceió, o Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE/USP), em São Paulo, o Museu do Estado de Pernambuco, em Recife, e o Museu Nacional, no Rio, dentre outras. 

Historiador e pesquisador da Associação Religiosa e Cultural Quilombo Ilê Axé T'Ojú Labá, Francisco Phelipe Cunha Paz comenta que o próprio acervo antes conhecido como Magia Negra (ele será rebatizado para um nome não racista) sofreu um apagamento após ser tombado, sendo renegado por quase 50 anos na área de preservação. 

A discussão envolve o entendimento da memória afro religiosa como memória negra brasileira, um campo que ainda tem menos espaço ao se falar da história do País e que por vezes se restringe apenas à questão escravocrata, ignorando todo o resto. “Por muito tempo, a maioria dessas heranças não eram reconhecidas como elementos de cultura de memória. E, depois, quando se identifica um valor, passa-se a silenciá-lo ou destruí-lo.”

Ele lembra que o próprio acervo foi reunido de forma autoritária e por uma visão externa, a partir de um histórico policial, e, portanto, foi organizado também a partir de uma idéia de exotismo, não como de algo sacro ou artístico. 

O historiador ressalta que esse movimento de repatriação também ocorre de forma imaterial e simbólica. “O Cais do Valongo (onde teriam chegado navios negreiros) é um elemento importante de se pensar como os povos matriz africana do Rio têm tentado dar uma dimensão além da materialidade”, comenta.

Isso também é visto em São Paulo, por exemplo, nos coletivos que defendem o não apagamento da história negra da Liberdade, na região central. “Hoje essas comunidades se organizam, continuam a entender que faz parte, é um elemento importante nessa reconstrução, de retomar o discurso sobre si mesmo, de fugir do lugar do eterno escravo.”

O especialista também compara esses movimentos ao de derrubada de símbolos colonialistas fora do País. “Com derrubada das estátuas, esses protestos não deixam de ser uma repatriação, também é uma forma de tomar para si a condução da narrativa.”

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Memória de religiões afro tem pouco espaço entre tombamentos

Igrejas, capelas, conventos e santuários católicos são a imensa maioria dos bens religiosos tombados no Brasil. Em nível federal, ultrapassam os 420 bens imóveis, distribuídos em todas as regiões do País. No caso das religiões de matriz africana, após o reconhecimento da coleção Magia Negra, um tombamento pelo Iphan somente voltou a ocorrer nos anos 1980 e, segundo dados de 2019, hoje esse reconhecimento restringe-se a 11 terreiros, dos quais nove estão na Bahia e os demais estão no Maranhão e em Pernambuco.

Nas esferas estaduais, essa situação se repete, embora ocorra alguns movimentos para mudar essa situação. Em São Paulo, por exemplo, cinco tombamentos na região metropolitana foram aprovados em 2019 na esfera estadual após a criação de um grupo de trabalho conjunto com lideranças do candomblé e da umbanda. Além disso, algumas casas têm procurado manter a própria preservação, com a  criação de espaços de memória. 

Repatriação de artefatos indígenas também é reivindicada

A retomada de artefatos indígenas também é discutida e reivindicada por lideranças de diferentes povos nativos. Nesse caso, as demandas são tanto internas quanto externas, envolvendo também peças que estão em instituições no exterior.

Um caso bem-sucedido ocorreu há 12 anos, com a repatriação da coleção Basá-Busá, com adornos de dança que estavam no Museu do Índio, de Manaus, e foram devolvidos à região de origem, no Alto Rio Negro, onde foram expostos. Essas peças haviam sido retidas por missionários cristãos cerca de nove décadas antes. Outro exemplo o de uma machadinha do povo krahô que foi restituída em 1986 após ter permanecido por décadas no Museu Paulista, em São Paulo.

A situação é ainda mais delicada quando envolve instituições internacionais. Atualmente, acredita-se que todos os mantos tupinambás em exposição no mundo estão na Europa, inclusive o mais conhecido deles, exposto na Dinamarca e que teve o retorno reivindicado após movimentação de herdeiros desse povo.

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