Dinheiro de obra em favela foi para Museu do Amanhã

Município realocou R$ 112,3 milhões originalmente destinados a trabalhos de infraestrutura no Morro do Pinto; morador fala em descaso

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Por Constança Rezende
Atualização:
Orla repaginada. Ex-prefeito destaca aposta em 'ícones' Foto: Fábio Motta/Estadão

RIO - Uma auditoria feita no Porto Maravilha por ordem da prefeitura do Rio concluiu que, para a construção do Museu do Amanhã, o município realocou R$ 112,3 milhões originalmente destinados a obras de infraestrutura em uma favela, o Morro do Pinto. A informação consta de relatório obtido pelo Estado, que cita um aditivo feito em contrato da Concessionária Porto Novo S.A., em abril de 2012, para obras na região. 

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Segundo o documento, o anexo cancelou verba que iria para a comunidade e a destinou ao museu, símbolo da gestão do prefeito Eduardo Paes (PMDB, 2009-2016) e da orla portuária carioca revitalizada. A realocação de recursos intrigou a nova gestão da Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio de Janeiro (Cdurp), que auditou as contas do Porto Maravilha. 

O projeto foi uma das iniciativas de Paes para a recuperação da infraestrutura urbana, dos transportes, do meio ambiente e dos patrimônios histórico e cultural da região portuária. As obras deram à cidade uma nova orla, com um passeio à beira-mar transformado em uma das principais atrações da Olimpíada de 2016. Atualmente, é muito frequentado nos fins de semana e feriados.

O relatório da auditoria foi entregue ao Tribunal de Contas do Município e à Câmara Municipal. No Legislativo, tramita um projeto para a abertura de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar o processo de revitalização da região. O Porto Maravilha é uma operação urbana consorciada (uma espécie de parceria público-privada) administrada pela Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio de Janeiro (Cdurp). Ela contrata para a execução de obras e prestação de serviços municipais a Concessionária Porto Novo S.A. 

Essa empresa tem como acionistas a Odebrecht Properties, do grupo Odebrecht (37,5%), a OAS Ltda (37,5%) e a Carioca Christiani-Nielsen Engenharia (25%). Todas foram citadas na Operação Lava Jato.

Números. A auditoria apurou também que a construção e a manutenção do Museu do Amanhã e do Museu de Arte do Rio (MAR) custaram R$ 686 milhões. Segundo a página da prefeitura na internet, a obra do Museu do Amanhã foi viabilizada por meio da comercialização de certificados de potencial adicional de construção (Cepacs). São títulos para investimento, que renderam R$ 215 milhões para o museu, “sem recursos diretos do Tesouro Municipal”, segundo o município. 

O ex-presidente da associação de moradores do Morro do Pinto, Sérgio Lancelloti, vê descaso. “Costumo comparar a revitalização ao carnaval, quando tudo é preparado, mas, depois que a festa acaba, nossa realidade volta ao normal.”

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Duas instituições recebem 75% da verba de fomento

A auditoria da Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio de Janeiro (Cdurp) no Porto Maravilha constatou ainda que quase 3/4 do dinheiro destinado ao fomento da cultura na região portuária (R$ 89,9 milhões de um total de R$ 122,7 milhões), foi investido apenas em duas instituições: o Museu do Amanhã e o Museu de Arte do Rio (MAR). Referência cultural da região, o Instituto Pretos Novos (IPN), por exemplo, recebeu R$ 355 mil e agora luta contra a falta de recursos. A operação financeira que criou R$ 3,5 bilhões em Cepacs, porém, previa que 3% desse dinheiro deveria ser aplicado no fomento da cultura em toda a região.

A diretora do IPN, Merced Guimarães, criticou os critérios da prefeitura para a destinação das verbas. O instituto, que é um centro de memória da população africana no Brasil, corre o risco de fechar. “Hoje, sobrevivemos de doações. A prefeitura não nos dá mais verbas e, se continuarmos assim, nosso estoque de recursos vai acabar e até junho devemos fechar”, disse a diretora. Segundo ela, pesquisadores que estudaram pequena parte do acervo o fizeram por conta própria. 

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Ossadas. O IPN se dedica ao estudo da história de cerca de 50 mil africanos que, durante a Colônia e o Império, foram enterrados na área sobre a qual fica sua sede. Eram escravos que chegavam da África mortos ou doentes. Enterrados no local sem identificação, nem cerimônia, ficaram esquecidos por séculos. Sua ossadas foram descobertas em 1996. O centro, onde também são realizadas exposições e visitas guiadas, precisa de obras.

Ao comentar a destinação de 73% da verba cultural para os museus em detrimento de patrimônios culturais da área, o ex-prefeito Eduardo Paes (PMDB) respondeu que “a decisão da administração anterior foi no sentido de criar dois ícones que permitissem a valorização da região e fossem âncoras do processo de revitalização - como o são”. “E isso não impediu que a municipalidade fizesse uma série de atividades, como o apoio e resgate do Instituto Pretos Novos e a ‘redescoberta’ do Valongo.”