‘Era uma possibilidade mágica observar a vida da comunidade de maneira positiva’

Arquiteto que projetou o Teleférico do Alemão, Jorge Mario Jáuregui critica descaso e destaca a inclusão do morro na paisagem

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Por Caio Sartori
4 min de leitura

Radicado no Rio, o arquiteto argentino Jorge Mario Jáuregui foi o escolhido para projetar o Teleférico do Alemão. Anos antes, o então governador Sérgio Cabral (MDB) havia ido a Medellín, na Colômbia, para acompanhar de perto a mudança da cidade que saíra do posto de mais violenta do mundo para o de referência urbanística e de pacificação. Um dos projetos mais simbólicos na terra do megatraficante Pablo Escobar, morto em 1993, era um teleférico de 10 quilômetros de extensão. No Alemão, o modal está parado desde 2016. 

Ao falar do teleférico, o primeiro transporte de massa por cabo da história brasileira, Jáuregui deixa transparecer uma mistura de saudosismo e revolta - pelo sucesso e o abandono do projeto, respectivamente. Lembra com empolgação de como o Complexo do Alemão, antes um lugar a ser escondido, entrou no radar dos turistas e se transformou em parte da cidade. Ao mesmo tempo, e era este o principal intuito, o modal facilitou o deslocamento dos moradores. Também permitiu uma visão de cima das favelas: observava-se das gôndolas a vida que ali transcorria. 

“O que mudou radicalmente no período do teleférico funcionando direito foi essa possibilidade das pessoas se movimentarem dentro do seu território com uma nova visão aérea das coisas. Era o complexo visto de cima, onde se andava vendo a vida transcorrendo embaixo, os meninos brincando na rua”, diz. “Era como uma possibilidade mágica observar a vida de uma comunidade de uma maneira positiva, uma percepção da vida em processo.”

Jáuregui sempre pontua o caráter simbólico daquele projeto. O Teleférico passou a aparecer na vista do Rio ao lado de pontos turísticos como a Igreja da Penha e o Cristo Redentor, dependendo de onde se olhava. O objetivo, explica, era este mesmo: trazer a favela para a paisagem. 

“Aquilo que estava escondido, de que ninguém queria saber, de repente emergiu com dignidade na paisagem. E aí quero comentar a questão da mobilidade, porque um sistema de teleférico tem a ver com o melhor deslocamento das pessoas dentro e para fora do contexto em que estão”, diz. “Implica uma mudança muito subjetiva: passa de um lugar de exclusão para um de conexão. Claro que não há sistema milagroso, mas há um amplo valor simbólico.” 

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No entorno, crianças brincam e tentam driblar os policiais para brincar de esconder nas dependências do teleférico. Foto: Wilton Junior/Estadão

Espécie de carioca-argentino, torcedor do Flamengo e da Mangueira, Jáuregui sempre foi afeito aos projetos de cunho social. Já trabalhou, por exemplo, no Favela-Bairro, programa da Prefeitura do Rio criado nos anos 1990. Ao comentar os impactos do Teleférico do Alemão, que vão além da mobilidade em si, ele elenca os mesmos pontos que moradores destacam. 

“O teleférico implicou o revigoramento do lugar. A população se organizou, criou comércio. Qualquer política pública tem que estar vinculada a uma vontade muito grande de gerar melhores condições econômicas para as pessoas.”

Nas estações, hoje abandonadas ou desvirtuadas, funcionavam diversos serviços à população.  “É, sem dúvida, um conjunto de coisas (que levou ao fechamento do Teleférico), mas se tiver que dar um fator principal, é o descaso político, o abandono das políticas públicas. Hoje, penso que se trata de revitalizar o sistema, incorporar novas mobilidades”, aponta Jáuregui. “Imagina um carro parado um tempão sem usar. Claro que só pode ter problemas depois.”

Um dos motivos alegados pelas autoridades nos últimos anos é o aumento dos tiroteios no Alemão, que chegou a viver um período - o de funcionamento das UPPs - que parecia indicar um futuro mais pacífico. Para Jáuregui, no entanto, o Estado e a arquitetura não podem abrir mão do seu papel de tentar transformar a realidade.

Atualmente não há nem mesmo controle do acesso à estação, na qual se entra sem dificuldade - a porta é facilmente aberta. Foto: Wilton Junior/Estadão

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“Se a gente for pensar que não se pode fazer as coisas porque tem tiroteio na cidade, não se pode fazer nada. Eu fazia o projeto, vamos dizer assim, no meio da batalha. Sim, isso existe, mas não impede de trabalhar, de tentar virar as coisas, a realidade”, diz. 

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