Mesmo após matar 32% menos civis que em 2019, Polícia do Rio foi a mais letal do País em 2020

Uma das hipóteses é de que redução esteja ligada à proibição, pelo STF, de operações em comunidades na pandemia

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Por Caio Sartori
5 min de leitura

Os dados de 2020 do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, lançado nesta quinta-feira, 15, expõem contradições da segurança no Rio. O território fluminense ainda é aquele em que os policiais mais matam, mas registrou queda de 31,8%, em comparação com 2019, nas mortes de civis por policiais.

No ano passado, foram registrados 1.245 mortos em supostos confrontos entre polícia e criminosos, ante 1814 no período anterior. O recuo na taxa por 100 mil habitantes, de 10,5 para 7,2, porém, não resultou de mudança na política do setor. Uma das hipóteses é que a causa foi a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de proibir operações em favelas sob a pandemia.

Operação especial da polícia em favela no Rio Foto: Dado Galdieri/The New York Times

Em junho de 2020, o ministro do STF Edson Fachin determinou que as incursões nas comunidades só poderiam acontecer em casos "absolutamente excepcionais" enquanto existisse pandemia. Pesquisadores que acompanharam o trabalho das forças de segurança observaram, contudo, que o Estado obedeceu apenas de modo parcial à liminar - e por pouco tempo. 

Um trabalho do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (Geni/UFF) avaliou que houve três momentos desde que o magistrado atendeu ao pedido do PSB na chamada ADPF das Favelas, como ficou conhecida a ação que travou as operações em comunidades pobres. Depois que foi concedida a medida liminar, aconteceu um período de razoável obediência, entre junho e outubro. No ultimo trimestre, a determinação passou a ser desobedecida. Já nos primeiros meses de 2021, teria sido afrontada. Os dados do Anuário foram coletados de janeiro a dezembro de 2020.

Com desobediência ao STF, mortes de civis cresceram de novo

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Os números ajudam a mostrar esse comportamento das polícias. Entre janeiro e junho de 2020, antes da liminar de Fachin, as médias mensais de operações policiais e de mortos após intervenção policial foram de 32,8 e 133, respectivamente. Nos quatro meses de relativa obediência à decisão, caíram para 18,7 e 37,7. De outubro a dezembro, contudo, os dados subiram para médias de 27 e 90.

Então chegou o Ano Novo e, segundo os pesquisadores, o Estado passou a desobedecer abertamente ao Supremo, o que deve culminar em um número alto de mortes em 2021. Período caracterizado pelo aumento contínuo nesses índices, o começo deste ano já teve média mensal maior que a do período pré-decisão: são 41,7 operações por mês e 134 mortes por agentes policiais. 

A operação da Polícia Civil que resultou em 28 mortes no Jacarezinho, zona norte do Rio, foi o ápice desse processo apontado pelos pesquisadores. Na ocasião, moradores e peritos apontaram uma série de supostas irregularidades nas mortes, que teriam apresentado características de execução.

Problema antigo do Estado, a violência policial ocupava lugar central na retórica do ex-governador Wilson Witzel (PSC). O mandatário foi eleito em 2018 com forte discurso focado em "abater" criminosos. Depois de eleito, em entrevista ao Estadão, prometeu empregar snipers para matar criminosos com "tiro na cabecinha".

Menos de dois anos depois, Witzel foi afastado do cargo por suspeitas de corrupção e teve seu impeachment confirmado em abril. Apesar de menos enfático na retórica, o governador Cláudio Castro (PL), que foi vice de Witzel, mantém a política de segurança e defendeu a polícia após a operação no Jacarezinho. 

Homicídios também caíram no Rio

Em conexão com a redução nas mortes de civis por policiais em 2020, o Rio também registrou queda de homicídios, segundo o Anuário. No Rio, 25% das mortes foram provocadas por agentes do Estado. 

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Em 2019, a taxa de homicídios por 100 mil habitantes foi de 34,6, número que caiu para 28,3 no último ano. Além disso, as pesquisas do Geni/UFF também mostraram nos últimos meses que a diminuição da violência policial não acarretou aumento de outros crimes, como aqueles contra o patrimônio. 

O mesmo grupo da UFF expôs, em outra pesquisa feita neste ano, que as operações das polícias do Rio são consideradas pouco eficientes. As categorias "desastrosa", "ineficiente" e "pouco eficiente" somam 85% do total de incursões feitas entre 2007 e o final de 2020. 

Os pesquisadores criaram uma metodologia inovadora - já que não existe esse tipo de avaliação por parte das autoridades - para classificar as operações em cinco níveis. São eles: desastrosa, ineficiente, pouco eficiente, razoavelmente eficiente e eficiente. Para fazer o cálculo, consideraram: os impactos das operações, como mortos, feridos ou presos; as motivações estratégicas e judiciais que as justificaram; e as apreensões, sejam de armas, drogas, cargas ou veículos. 

É considerada boa operação aquela que ocorre a partir de procedimentos judiciais e investigativos, cumprindo mandados de busca ou de prisão; que tem número expressivo de apreensões, especialmente de armas; e que não resulta em mortos e feridos. 

STF não proibiu ações em favelas, e redução por pandemia favoreceu o tráfico, diz polícia

A Secretaria da Polícia Civil afirmou, por nota, que, em relação à decisão do STF sobre ações policiais em favelas, “é um equívoco afirmar que houve proibição de operação nas comunidades”. Segundo o texto, o que houve “foi a redução de ações policiais no início da pandemia”, tendo “como consequência a expansão territorial e de armamento das organizações criminosas, por meio do lucro da venda de drogas”. Segundo o órgão, todas “as operações da Polícia Civil são precedidas de investigações devidamente judicializadas e acompanhadas pelo Ministério Público.”

“As ações da Secretaria de Estado de Polícia Civil (Sepol) são pautadas nos pilares de inteligência, investigação e ação e têm alcançado redução constante em todos os índices de violência registrados pelo Instituto de Segurança Pública (ISP)”, prosseguiu o texto. “Inclusive com resultados, em alguns setores, que são os melhores desde o início da série histórica. As ações priorizam sempre a preservação de vidas, tanto de policiais quanto dos cidadãos.”

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Também por nota, a Secretaria de Polícia Militar afirmou que  as ações da corporação são baseadas em informações transmitidas mensalmente pelo Instituto de Segurança Pública (ISP). “As forças de segurança do Estado atuam num cenário complexo, no qual há décadas facções criminosas rivais disputam território de forma extremamente violenta”, diz o texto. “Apesar de todas as dificuldades, os indicadores criminais divulgados pelo ISP demonstram reduções expressivas e contínuas dos indicadores criminais estratégicos, ou seja, aqueles que mais impactam na vida dos cidadãos.

“No ano de 2020, período do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, a letalidade violenta (soma de homicídio doloso, morte por intervenção de agente do Estado, latrocínio e lesão corporal seguida de morte) registrou uma taxa de 28 por 100 mil habitantes, a menor desde o início da série histórica, em 1991. No mesmo ano, a taxa de homicídio doloso  analisado isoladamente  também foi a menor dos últimos 30 anos: 20 por 100 mil habitantes. Já a taxa de morte por  intervenção de agente do Estado foi  de 7 por 100 mil habitantes, a menor desde 2016.”

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