Quase 2 mil pessoas com covid e outras infecções morreram à espera de leito ou transporte no Rio

Dado representa 44,5% dos que precisaram de internação no SUS e faz parte de relatório da Defensoria Pública do Rio, que afirma que Estado e municípios não se planejaram para um enfrentamento adequado da pandemia

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Por Fabio Grellet
Atualização:

Pelo menos 1.891 pacientes com suspeita ou diagnóstico de covid-19 ou outra infecção respiratória viral que precisaram de internação em hospitais da rede pública fluminense, de abril a agosto de 2020, morreram à espera de leito ou durante o transporte da unidade de saúde ao hospital de referência. O número corresponde a 44,5% dos 4.249 pacientes que precisaram ser internados. Outras 104 pessoas (2,44% dos 4.249) morreram antes mesmo que a transferência fosse oficialmente solicitada à Central Estadual de Regulação. Os dados são de uma pesquisa realizada pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro.

No Rio, 44,5% dos pacientes que precisaram de internação no SUS para covid-19 ou infecções virais, entre abril e agosto, morreram na fila de espera Foto: AP / Silvia Izquierdo

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O órgão pediu informações a 214 unidades de saúde do Estado do Rio e recebeu respostas de 111 (51,86%). As informações foram consolidadas pela Coordenação de Saúde e Tutela Coletiva e pela Diretoria de Estudos e Pesquisas de Acesso à Justiça da Defensoria Pública.

Para a coordenadora de Saúde e Tutela Coletiva da Defensoria, Thaísa Guerreiro, o Estado e os municípios fluminenses, sobretudo a capital, não se planejaram para um enfrentamento adequado da pandemia.

 “Quase metade dos cidadãos que precisaram de internação no Sistema Único de Saúde (SUS) faleceram sem atendimento digno, em uma longa fila de espera, o que é inadmissível em um estado democrático de direito. Não podemos nunca banalizar a morte por desassistência”, afirmou.

Segundo a pesquisa, de abril a agosto as 111 unidades de saúde prestaram 546.828 atendimentos. Do total, 102.513 (18,74%) foram de casos suspeitos ou confirmados de contágio pelo coronavírus. Outros 40.222 (7,35%) eram quadros de infecção respiratória por causas diferentes ou não identificadas. Somados, esses dois tipos de ocorrências representam 26,1% do total de atendimentos prestados. Mas, de 142.735 ocorrências, apenas 73.711 (51,64%) foram notificadas à Vigilância Epidemiológica.

Desses mais de 142 mil atendimentos, 4.249 pacientes (2,97%) precisaram ser transferidos para internação em enfermarias ou UTIs de hospitais, e 1.891 morreram antes de ocupar um leito. Desse grupo, 1.360 moravam ou procuraram unidades de saúde na capital. No município do Rio, a unidade de saúde que registrou o maior número de pacientes mortos à espera de vaga foi a Unidade de Pronto Atendimento (UPA) de Manguinhos, na zona norte, onde 231 pacientes morreram nessas circunstâncias. Em segundo lugar ficou o Hospital Municipal Albert Schweitzer, em Realengo, com 202 pacientes mortos.

“Mas esse resultado é só uma amostragem que indica os problemas”, afirmou a subcoordenadora de Saúde e Tutela Coletiva, Alessandra Nascimento. “Os resultados retratam melhor a situação da capital, porque as unidades de saúde do Rio foram as que mais responderam ao questionário. Na Baixada Litorânea, por exemplo, pouquíssimas unidades responderam. Outras, em todo o Estado, não chegaram ao ser consultadas. Por isso, outros resultados ainda estão sendo aguardados e serão contabilizados”.

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Outro fator que dificulta a comparação é que cada unidade de saúde prestou informações sobre o período de 90 dias imediatamente anterior à data da resposta. Isso faz com que a comparação não abranja um período padronizado para todas as unidades, mas períodos de 90 dias entre abril e agosto.

Ao todo, 4.555 pacientes com Covid-19 ou doenças com sintomas similares morreram, nas 111 unidades de saúde pesquisadas. Não é possível saber com precisão quantos dos pacientes atendidos realmente estavam contaminados pela Covid-19, porque só 32.580 pessoas com sintomas foram testadas (22,82% dos 142.735 casos suspeitos).

“No caso dos pacientes que apresentavam sintomas, a testagem seria crucial para o fortalecimento dos dados, pois indicaria o real comportamento da doença no Estado e a indicação clínica tempestiva (dentro do espaço de tempo adequado) para o tratamento adequado”, afirmou a subcoordenadora de Saúde e Tutela Coletiva, Alessandra Nascimento. “Muitos pacientes foram a óbito sem a confirmação precisa de seu diagnóstico. Isso nos faz questionar a adequação do atendimento médico, seja por falta de confirmação no diagnóstico, seja por ausência de acesso aos leitos, e ainda se o número de mortes por Covid-19 não é muito maior do que o divulgado”.

A pesquisa, porém, não vai embasar novos processos ou outras medidas. A Defensoria já tem uma série de ações coletivas ajuizadas desde os primeiros casos de falta de leitos.

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A espera por leitos foi mais demorada nas primeiras semanas de pandemia, quando os hospitais de campanha ainda estavam em construção. Os casos de morte por falta de vaga ou pela demora em consegui-las, no entanto, não deixaram de ocorrer mesmo depois da abertura deles.

A família de João Firmino do Nascimento, de 75 anos, precisou recorrer à Justiça, por meio da Defensoria Pública, para conseguir um leito em hospital, em setembro. Ele foi atendido na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) de Santa Cruz, na zona oeste. Precisava de um leito de UTI, que só o conseguiu três dias depois, no Hospital Municipal Raul Gazolla, em Acari (zona norte). Morreu após cinco dias de internação. A família considerou que o tempo de espera pelo leito de UTI foi decisivo para a morte do idoso.

Questionada sobre a situação exposta pela pesquisa da Defensoria, a Secretaria de Estado de Saúde afirmou que não há estudo científico que embase os dados da Defensoria nem descrição da metodologia utilizada. Isso a caracterizaria a pesquisa “como um levantamento e não um estudo científico”. “Causa estranheza o fato de que a SES tenha conhecimento do estudo por meio da imprensa, visto que realiza reuniões semanais com a Defensoria Pública”, criticou, em nota.

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Também questionada sobre os dados, a prefeitura do Rio de Janeiro não quis se pronunciar alegando que a pesquisa teve âmbito estadual.

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