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Papa do 'fim do mundo' volta a desafiar tradição da Igreja

"É uma abordagem pastoral que ele tem feito, de encontrar as pessoas onde estão, de ir ao encontro e aproximá-las de Deus, em vez de exigir que mudem antes de ser acolhidas", diz Filipe Domingues, da Universidade Gregoriana de Roma

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Por Felipe Frazão
Atualização:

BRASÍLIA - O apoio do Papa Francisco às leis para a união civil entre pessoas do mesmo sexo, divulgado nesta quarta-feira, 21, num documentário exibido no Festival de Cinema de Roma, pôs seu pontificado outra vez na linha de rupturas históricas. Com a mensagem, ele reacendeu a disputa feroz com a ala conservadora da Igreja Católica e trouxe de volta as atenções ao Vaticano, esvaziado literalmente desde o início da pandemia da covid-19. “O que precisamos criar é uma lei de união civil”, afirmou.

Ao se apresentar como papa à multidão na Praça de São Pedro, em 2013, Jorge Mario Bergoglio brincou que os cardeais tinham ido buscar um novo pontífice no fim do mundo, numa referência à Argentina. De lá para cá, Francisco não abandonou, em nenhum momento, o gesto de dialogar para fora dos muros do Vaticano. Nem de brincar com a metáfora do dilúvio. A busca por rebanhos distantes tornou-se, sobretudo, um embate constante com alas conservadoras dos Estados Unidos e da Europa. A postura inclusiva e de aceitação das diferenças marca o pontificado.

Papa Francisco aprova união civil entre pessoas do mesmo sexo. Foto: Filippo Monteforte/AFP Photo

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Na defesa de mais proteção legal aos homossexuais, Francisco marcou distância, entretanto, de equiparar essa união ao casamento entre homem e mulher, o sacramento. Pela interpretação católica, a família continua sendo formada por um homem e uma mulher, com objetivo de ter filhos. Embora esteja na órbita do direito, isto é, longe da religião, o tema da união civil, no entanto, sempre causa abalos em setores influentes do catolicismo, que fazem campanha declarada contra ele e tira da comodidade bispos e padres, obrigados a dar explicações em suas paróquias e dioceses. 

Em março, o papa rezou sozinho na principal praça do cristianismo, uma cena única na história. O novo coronavírus avançava. A imagem do líder global solitário foi quebrada pelo documentário Francisco, do americano de origem russa Evgeny Afineevsky, em que ele se manifesta a favor da união civil entre homossexuais. As entrevistas foram realizadas no Vaticano a partir de 2018. A última ocorreu em junho deste ano.

Num momento em que circulavam impressões em Roma sobre um certo cansaço na proposta do papa de oxigenar a Igreja, Francisco voltou a mostrar convicção num pontificado do “fim do mundo”, periférico. Aliás, o conclave de 2013 buscava, depois dos papados de João Paulo II e Bento XVI, um nome de mudanças. A atuação do então cardeal Bergoglio era por demais conhecida.

Como arcebispo de Buenos Aires, ele se opôs fortemente em 2010 à lei do matrimônio igualitário. Aprovada durante o governo de Cristina Kirchner, a lei foi combatida como "pretensão destrutiva do plano de Deus" pelo então presidente da Comissão Espiscopal da Argentina. O cardeal Bergoglio à época se manifestava internamente no órgão a favor da união civil, considerado um "mal menor", mas teria sido vencido no episcopado argentino.

Avanços em questões como a união homossexual têm sido um obstáculo a Francisco, visto como um progressista na Igreja. No último Sínodo da Amazônia, por exemplo, ele foi acusado de promover heresias e recuou de autorizar a ordenação sacerdotal de homens casados como padres e de promover mulheres na hierarquia eclesial.

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As duas propostas saíram das bases da Igreja na América do Sul, contavam com apoio do episcopado local e de países na Europa, mas ficaram para trás por causa da possibilidade de reforçar um cisma na Cúria Romana. No Sínodo da Família, anos antes, um trecho que propunha a acolhida aos gays também ficou pelo caminho. Um sinal de que a “revolução” de Francisco esbarrava em temas morais ligados à sexualidade.

No ano passado, Francisco havia promovido a cardeais alguns nomes abertos à causa no Vaticano. Entre eles, o cardeal italiano Matteo Zuppi. Ele também recebeu em audiência o padre jesuíta norte-americano James Martin, que trabalha com atendimento de grupos LGBT católicos e milita por mais abertura no Vaticano. Martin definiu como “histórico” o pronunciamento do papa na entrevista. “O que faz dos comentários do papa à união civil do mesmo sexo tão relevante? Primeiro, ele dizer isso como papa, não como arcebispo de Buenos Aires. Segundo, ele está claramente apoiando, não simplesmente tolerando, a união civil. Terceiro, está dizendo isso em frente às câmeras, não em privado”, escreveu o jesuíta no Twitter.

Para o pesquisador Filipe Domingues, doutor em Ciências Sociais pela Universidade Gregoriana de Roma, o papa avançou em posicionamentos anteriores ao citar o direito à família, dentro da proposta “pastoral” de seu pontificado. “Ele foi muito claro. Eles têm direito a ser parte de uma família, para mim é uma grande novidade. É uma abordagem pastoral que ele tem feito, de encontrar as pessoas onde elas estão, de ir ao encontro e aproximá-las de Deus, em vez de exigir que mudem antes de ser acolhidas”, diz Domingues. “Ele evita um pouco esses temas porque a igreja já tem um ensinamento e fala quando quer acrescentar algo novo, neste caso me parece ser o direito a ser parte de uma família.”

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A diferença entre o sacramento do casamento, que continua inabalável, e as leis civis pela união homossexual sempre foi ressaltada pela Igreja. Não poderia ser diferente em se tratando de uma instituição milenar que há décadas vê aumentar a concorrência de religiões evangélicas nos países em desenvolvimento. Longe de mudar uma doutrina da Igreja, a fala do papa, no entanto, espalhou-se como um rastilho na era digital e leva o clero a ter que explicar a suas bases uma posição sobre um tema que julga esclarecida.

O padre e teólogo Manoel José de Godoy, ex-assessor social da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), avalia que Francisco fez mais um movimento em favor da inclusão, mesmo contra a campanha de grupos fundamentalistas que bloquearam avanços nos sínodos da Família e da Amazônia. "É um reconhecimento de um dado da realidade”, disse ao Estadão. “Os casais gays existem, estão marginalizados e precisam de amparo da lei, porque senão vão continuar sendo assassinados, rejeitados pela família, sem amparo financeiro na morte do companheiro, essa situação toda”, completou. “Não é ruptura nem esculhambação com o magistério.”

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